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domingo, 16 de novembro de 2014

VESTIDO DE NOIVA




- Jessika, acorde. Vamos, chegou o seu vestido de noiva.
- Chegou o quê? Do que você está falando mãe?
- Do seu vestido. Olha que coisa mais linda... Vá levante-se, hoje é o dia mais importante de sua vida.
- Pare com essa brincadeira, mãe, só tenho onze anos!
- Do que está falando Jessika, você completou 23 anos a semana passada... Já sei, é o stress do casamento, vamos levante-se e vá tomar um bom banho. Você ainda tem hora marcada no salão, "O dia da Noiva", lembra?
- Mãe, eu não vou me casar? Do que você está falando mãe?
- Não é possível. Você está de brincadeira. Levante-se e dê uma olhadinha no espelho. 
- Mãe, mas essa aí sou eu?
- Claro, Jessika, você se tornou uma moça lindíssima!
- Mãe, o que está acontecendo? Olhando para você agora, realmente parece que se passaram alguns anos. E o Renato?
- O Renato já está casado, tem um filho lindo.
- E o papai? Ele já está com os cabelos brancos?
- Jessika você sabe muito bem que estão branquinhos, mas seu pai continua charmoso.
- Mãe, quem é meu noivo? Com quem eu vou me casar?
- Você vai se casar com o Victor, Jessika. Tudo bem, gostei da brincadeira, agora vamos, você já está atrasada.
- Eu não conheço nenhum Victor.
- Jessika, por favor!
- Mãe, estou ficando com medo. O que aconteceu com os meus doze, treze anos? E a minha festa de quinze anos? Eu terminei o ensino médio? E a faculdade, mãe?
- Jessika, é claro que você fez tudo isso! Todos os anos de sua adolescência foram maravilhosos, o seu primeiro namorado, as viagens que fizemos, a colação de grau do ensino médio, foi lindo! E a sua formatura então, nem se fala. E quando nasceu o filhinho do Renato, você fez uma festa maravilhosa. Comemoramos seus 18 anos no Iate Clube.
- Mamãe eu não me lembro de nada disso!
- Sua juventude foi muito bem aproveitada, você sempre conquistou tudo o que quis, e agora vai se casar com um ótimo rapaz, e lindo!
- Mãe só de ouvir isso me dá calafrios, eu não estou entendendo nada!
- Jessika, provavelmente, amanhã quando estiver curtindo sua lua de mel, esse stress vai acabar. Até é compreensível que você esteja se sentindo confusa.
- Meu coração está apertado, mãe...
-... Jessika acorde, acorde. Chegaram às roupas que você tanto queria.
- Eu não quero me casar, mãe.
- Do que está falando menina? Claro que você não vai se casar, ainda é muito nova para pensar nisso.
- Mãe eu voltei. Eu tenho onze anos, que maravilha!
- É claro que tem onze anos Jessika. Você estava sonhando não é?
- Que bom, mãe! Vou poder curtir meus 12, 13, 15, 18 anos como qualquer menina da minha idade pode curtir.
- Como a vida é maravilhosa! Mãe eu quero curtir cada minutinho da minha juventude, percebi que o tempo pode passar muito rápido.

UM DIA DE SEREIA


- Tenho sonhado todas as noites que estou numa praia e ouço uma melodia suave que vem do mar. Essa música me convida para nadar. Vejo ainda bolhas de água borbulhando onde cardumes de peixes protegem um navio naufragado, amparado por uma pedra azul. 
- Que lindo sonho Bianca. Você andou ouvindo nossas conversas?
- Não mãe, por quê?
- Vamos passar o fim de semana em Fortaleza, alugamos uma casa na praia de Iracema.
- Essa praia tem uma estátua de uma mulher sobre um pedestal?
- Sim é o símbolo da praia de Iracema. 
- Mãe essa estátua aparece no meu sonho, não vejo a hora de conhecer. 
O final de semana chegou. Bianca e sua família pisavam nas areias da praia de Iracema. O sol estava forte e Bianca era constantemente alertada a passar o protetor solar. Enquanto passava ouviu um som.
- Mãe, você está ouvindo essa música?
- Não Bianca, só ouço os ruídos da praia, som do mar, de pessoas falando, som de músicas que vem dos carros na orla. 
- Não mãe, essa melodia suave. É aquela moça que está no mar, ela está cantando, e está me chamando. Vou até lá conversar com ela.
- Nada disso.
- Pode deixar, mãe. Eu não vou entrar no mar agora. 
E Bianca caminhou ao encontro daquela bela moça.
- Oi, eu sou Bianca, quem é você? 
- Eu sei que é você. Eu sou Iracema, a guardiã dos mares, a sereia desta praia. Todos os anos nesta data eu escolho uma jovem para descobrir os segredos do mar. E você foi escolhida Bianca, venha vamos mergulhar.
- Mas eu não posso!

- Não tenha medo, segure minha mão, você vai viver uma aventura inesquecível.
Bianca olhava para sua mãe na praia, mas sentia-se atraída pela canção, deixou-se levar adentrando o mar. Em poucos minutos Bianca mergulhava e via golfinhos fazendo manobras ao seu lado, via cardumes de peixes coloridos que brincavam em torno de si, viu uma enorme pedra azul e bolhas de água, percebeu que era um navio naufragado, exatamente a mesma imagem dos seus sonhos.
- Nunca imaginei que pudesse conhecer o fundo do mar. Estou vendo um castelo.
- É lá que eu moro Bianca, vamos até lá.
Bianca notou que nadava com mais leveza, olhou para si e viu-se com calda de sereia. 
- Eu virei uma sereia?
- Sim, Bianca. Hoje é o seu dia de sereia. Vamos até o meu castelo, lá há muitas joias, roupas e sapatos.
- Mas se você é uma sereia para que ter roupas e sapatos?
- Também sou mulher e gosto de estar sempre bonita, por isso somos sedutoras, ninguém resiste ao canto das sereias.
- Por que eu fui a escolhida? 
- Porque você é linda e tem bom coração. Só uma bela jovem poderá descobrir outros navios naufragados. Você está aqui para nos apontar. Há um navio de centenas de anos que afundou nessas águas, precisamos descobri-lo para resgatar as riquezas que estão por lá e salvar inúmeros peixes que estão aprisionados. 
- Eu sei onde está esse navio, eu o vejo em meus sonhos. Está atrás da outra pedra azul.
As sereias, Iracema e Bianca, nadaram até o navio. Lá encontraram milhares de pedras preciosas, encravadas em ouro e prata, além de lindos diamantes, safiras e rubis. Os peixes foram libertados e agora poderiam nadar pela imensidão do oceano. Um golfinho trouxe-lhe um bracelete com esmeraldas.
-Que lindo! Disse Bianca.
Iracema colocou o bracelete em Bianca e lhe disse.
- Missão cumprida Bianca, agora você já pode voltar para a praia.
Minutos depois, Bianca abriu os olhos lentamente e viu sua mãe balbuciando palavras que mal podia ouvir.
- Menina, você desmaiou. Onde já se viu adormecer na areia. Acho que é insolação. Venha Bianca, vamos para nossa barraca, você precisa de cuidados. Que pulseira é esta?
- Eu ganhei de Iracema, a sereia deste mar. Mãe, eu vivi a maior aventura da minha vida, conheci as profundezas do mar, descobri suas riquezas, vi muitos cardumes de peixes, golfinhos, baleias. Conheci o castelo de Iracema e virei sereia por algumas horas.
- Hummm... Bianca, acho que a insolação afetou seu cérebro.
- Veja mãe, está pulseira é a prova de que eu estou falando a verdade. Eu ganhei porque descobri um tesouro em um navio que naufragou. São de esmeraldas. 
- Esmeraldas! Puxa você está mesmo delirando.
Bianca olhou para o mar e viu a sereia Iracema entrando na água e acenando para ela. Bianca acenou despedindo-se.
- Adeus Iracema, obrigado pela oportunidade de ter vivido esta incrível aventura.

LEMBRANÇAS







- Oh de casa!... Tem alguém aí?
“Será que tem cachorro aqui? Eu tenho tanto medo. Desde que o meu pequeno Maurício foi mordido, fiquei assim, medrosa...” 
- Tem alguém aí? 
“Estranho! A porta está aberta. Meu Deus... Preciso de um lugar para passar esta noite”. 
- Oh de casa! Tem alguém aí?
- Sim, pode entrar!
- Boa Noite! Com licença, preciso de ajuda. Um acidente na estrada me obrigou a desviar do caminho. Entrei por uma rua alternativa, estreita e com muitas poças d’água. Meu carro derrapou e atolou na lama... Depois de muito esforço saí do carro e caminhei sem rumo à procura de ajuda, foi quando vi sua casa... É a única do caminho. Chamou minha atenção porque vi as janelas entreabertas e observei que havia uma fresta de luz. 
- Eu sei, estava te esperando!
- Me esperando? Como? Estou perdida neste lugar. 
- Eu sei... Minha casa é humilde, mas está sempre pronta para acolher as pessoas que passam por aqui. Eu fiz um chá de camomila e sei que você gosta.
- Como sabe? 
- É meu chá favorito...
- É o meu também. 
- Procuro estar sempre preparada para receber alguém... Sinto-me muito sozinha, gosto quando tenho companhia... Quando não a tenho preparo o meu chá preferido e pego meu álbum de fotografias... Mas o que te trouxe por esta região?
- Na verdade eu não sei. Estou deprimida. Por isso resolvi sair um pouco. Peguei meu carro e quando percebi já não sabia mais onde estava... E agora estou aqui tomando um chá... Ando meio desanimada, sem saber o que fazer da minha vida.
- Você ainda é jovem, inteligente, é muito bonita... Não se sente feliz?
- Não senhora... Minha vida é um verdadeiro desperdício... Mas acho que não vale à pena falar disso agora.
- Por que não?
- Porque não lembro muito do meu passado... Alias, procuro não lembrar...
- Não podemos renegar o passado... Ele edifica o futuro... E mesmo que nos pareça ruim é de muita valia. Adquirimos experiência, aprendemos a superar os desafios da vida... Está vendo aquela janela, aproxime-se dela, abra-a, veja a bela paisagem. Eu diria que ela é especial... Com certeza lembrará do seu passado e terá uma nova visão.
- Vejo uma linda noite lá fora quente e iluminada, é noite de lua cheia!
- Observe... Contemple a natureza... A noite está clara... O que vê?
- Vejo o convento... No interior de São Paulo!... A freira está na porta á minha espera. Meus pais vão á frente discutindo, como sempre. Éramos pobres, passávamos muitas dificuldades. Eu, apesar de muito pequena, entendi que aquele seria meu novo lar... Sempre ouvia quando meus pais diziam que não poderiam ficar comigo... E levaram-me para aquele lugar, um casarão, nunca havia visto nada tão grande, parecia um castelo. A freira nos atendeu e me levou para dentro... Que tristeza... Meus pais tomam distância... Minha mãe tentava olhar para trás, ameaça uma, duas vezes. Meu pai puxando-a pelo braço tentava impedi-la de me olhar, mas antes que dobrassem o quarteirão, ela conseguiu se desvencilhar dele e levando as duas mãos á boca manda-me um beijo, mas continua sendo arrastada...
- Seus pais a amam... Só que precisavam de um tempo para se recuperar. Estavam desempregados e sem filhos teriam mais facilidade de arranjar um trabalho. Eles tinham planos de buscá-la logo que fosse possível. Apesar de tudo e da saudade que sentia deles, você viveu dias melhores... Olhe para a janela e conte-me o que vê...
- Vivíamos em 1926. Anos difíceis. Tive que trabalhar... Segundo a freira, eu precisava ajudar nas tarefas. Passei a lavar, limpar e servi-las. Não estudava, no convento não havia crianças. Elas não me deixavam folhear as revistas que esporadicamente eu via circular no convento. Nem me deixavam participar das conversas “sérias”. Sempre pediam para que eu fosse me deitar. O tempo passou rapidamente e meus pais nunca mais voltaram... Agora já adolescente era mais uma funcionária sem salário, do que uma interna. Tinha um lugar para morar, no entanto, não tinha ninguém para conversar, nem tão pouco para me ouvir... Nesta época algo muito importante aconteceu... O convento foi requisitado pelas autoridades para servir de hospital de campanha aos feridos da revolução de 1932. Chegavam ao convento muitos feridos, homens feios, bonitos, gordos, magros, não importava... Eles imploraram por ajuda e eu estava lá para ajudá-los, apesar do sofrimento daqueles homens, sentia-me útil... Aprendi a ser enfermeira. Nunca tinha visto um homem nu... Que coisas estranhas eles carregavam entre as pernas! 

Eu acreditava que doía... Pensei que eram ferimentos das batalhas, ficavam com aqueles caroços pendurados... Parecia um saco!... Eu achava estranho... Todos tinham aquilo no mesmo lugar? Meu Deus que coisa feia...! Alguns daqueles homens não suportaram os ferimentos e partiram. Aí descobri o que era a morte. Chorei. Chorei muito... Fui consolada pela madre superiora dizendo que a vida era assim, um dia todos iríamos morrer e descansar. Aí então me desesperei de vez... Não queria mais descansar... Trabalhava dia e noite somente para não pensar que podia morrer também. Por que a guerra? Por que a morte?
- Nós nascemos para sermos felizes. Deus nos colocou a disposição a água, as matas, as montanhas, o vento, o sol... Deu-nos a vida, alimento, mas nem sempre valorizamos e queremos mais, não observamos com seriedade o que Deus nos deu e o que foi criado para nos dar felicidade passa a ser o motivo das guerras, onde um atira no outro para roubar um pedaço de terra, um pouco d’água, um pouco de comida, mas tudo isso pertence a todos... Quem sabe um dia, os homens poderão compreender que tudo isto está a nossa disposição, sem precisar fazer guerra... 
- Durante os meses seguintes os soldados foram se recuperando e naquela noite... Não... Não quero mais ver nada...
- Continue você é forte. Veja a experiência que adquiriu. Tanto sofrimento veio fortalecê-la. Vamos continue...
- Um daqueles soldados que ainda estava na enfermaria, aproveitou o momento em que eu estava limpando o quarto, levantou-se de sua cama empurrou-me contra a parede e num ato desesperado levantou a minha saia... Eu fiquei aflita, não entendi o que ele queria, tive medo e não reagi. Aquela coisa estranha que traziam entre suas pernas estava grande... Parecia-me diferente, enquanto tentava entender o que ele queria, acompanhei seus movimentos e senti uma dor muito forte... Ele me machucou. Empurrei-o, e ele assustado com meus gritos, fugiu. Chorei a noite toda. Eu cuidei daquele homem! Ele não tinha o direito de me machucar. Ao passar dos meses minhas regras tão recentes, não vieram mais, na verdade ainda não tinha entendido porque tudo aquilo acontecia todos os meses, minha barriga crescia rapidamente. Contei para a freira o que estava acontecendo e ela me explicou tudo com detalhes, e com tom de acusação disse que eu iria dar a vida a um novo ser. Meu Deus quantas descobertas, aprendi o que era a morte noutro dia, de repente descubro que posso dar a vida! Fiquei orgulhosa de mim...
- Oh! Minha querida. Agradeça a Deus por não ter carregado este trauma. Apesar de tudo você estava feliz por poder gerar uma vida. Imagine as fraquezas e carências daquele homem? Você tratava deles com carinho, com afeto, cuidava das suas partes íntimas que considerava feridas. Vá até a janela... Continue e veja quanta alegria...
- Já era tarde quando senti as dores do parto. As freiras trabalharam muito e felizmente nasceu meu menino, porém nasceu com uma deficiência nas pernas, eram tortas e pouco desenvolvidas. As freiras tentaram de tudo, massagens, chás caseiros, compressas de ervas, mas ele não reagia. Não pude mais continuar morando no convento e mudei-me para uma casinha no subúrbio que pertencia ao convento, onde recebia mensalmente uma pequena ajuda das freiras para que eu pudesse cuidar de meu menino, precisei arranjar um emprego como auxiliar de enfermagem no hospital para complementar a renda mensal e pagar Dona Nezinha, uma vizinha, para tomar conta de Maurício. Ele demorou a andar e quando começou, o fazia com movimentos bruscos. Ainda era pequenino quando numa tarde ao tentar correr um cachorro avançou e mordeu-lhe a perna. Maurício gritava assustado e logo conseguimos socorrê-lo. Depois do susto começamos mais um longo período de tratamento. Malditos vizinhos que tem cachorros e não cuidam deles, como podem deixá-los soltos por aí? Coitadinho do meu menino! Mas felizmente isso não o perturbou. Maurício superou mais este incidente... Sempre foi muito inteligente, aprendeu a ler e escrever com facilidade. Ia muito bem nos estudos. Para minha surpresa Maurício dizia que queria ser atleta, gostava de ver as revistas de esportes e sentia-se motivado cada vez mais. Ele queria correr não falava de outra coisa. Eu não queria desanimá-lo, mas como meu Deus? Com aquelas perninhas atrofiadas e tortas, como poderia correr? Anos passaram e Maurício não desistia desta ideia. Queria correr. Começou a treinar na escola. Cortava-me o coração ver seu esforço nos treinos que era em vão. Sabia que jamais conseguiria chegar a algum lugar. Nem podia incentivá-lo e meu coração de mãe sofria muito.
- Minha querida venha cá. Deus lhe deu uma vida para que você pudesse amar. Maurício é tão abençoado que apesar deste problema tinha forças para lutar e queria mostrar para você que era capaz. Quantas mulheres gostariam de poder gerar uma vida e não podem? Deus lhe deu esta dádiva! Vamos continue...
- Borges! Este foi o homem com quem dividi alguns momentos bons, poucos na verdade, embora tivesse me dado conforto. O conheci no hospital aos 27 anos. Eu ainda jovem, bonita, atraente, porém triste. Mas isto não importava. Borges era muito rico, mas estava doente e era avarento. Não queria pagar uma enfermeira para cuidar dele. Então me ofereceu uma casa e uma vida em comum, desde que aceitasse algumas condições. Eu teria uma casa, conforto, roupas, tudo o que precisasse, mas teria que cuidar dele de dia e de noite, empregaria toda a minha experiência como enfermeira... Maurício ficava na casa de Dona Nezinha enquanto eu fazia companhia a Borges. Eu o namorava e recebia algum dinheiro pelo trabalho dispensado, era o suficiente para cuidar do meu pequeno Maurício. Na escola, mesmo com suas limitações, continuava correndo já com alguma desenvoltura. Com o passar do tempo meu compromisso se firmou. Casei-me com separação total de bens. Borges não aceitava Maurício. Não queria nenhum envolvimento com o meu filho, ainda mais com seus problemas de saúde que se agravaram. Submeti-me a tais condições e contratei definitivamente D. Nezinha para ficar com Maurício, pois precisávamos vir para São Paulo para um tratamento mais adequado a Borges.
- Na Verdade você não queria abandoná-lo. Você sempre acreditou que iria buscá-lo. Quis proporcionar-lhe um futuro mais seguro. Não se culpe. Dona Nezinha o queira muito bem e o tratava como filho!
- É verdade, eu achei que me casando poderia lhe dar uma educação digna, diferente da que eu tive. Mas infelizmente tudo se repetiu. Abandonei meu filho. 
Apesar de ter tido a sorte de encontrar uma mãe para ele. D. Nezinha amava-o acima de tudo e foi para ele a mãe que eu não consegui ser. Formei-me como enfermeira e passei a tratar de Borges com mais afinco. Ele sofria com problemas renais e não quis se internar para um tratamento melhor. Apesar de tudo a companhia dele me dava segurança.
- E apesar da saudade que sentia de você, Maurício teve uma boa educação. D. Nezinha deu-lhe carinho e sempre o incentivou a realizar o seu sonho. Isto fez muito bem para Maurício... Veja na janela como ele se sente...
- Chegávamos ao final do ano de 1950. Vejo-me lendo os jornais da época que noticiavam a Corrida de São Silvestre, em destaque a foto de Maurício. Levei um susto quando vi aquela foto. Apressei-me em ler a reportagem que destacava um jovem deficiente, estava emocionada. O meu menino participaria da corrida. Maurício dizia na entrevista que iria correr, pois tinha como meta mostrar para sua mãe que ele suportaria os quilômetros daquela prova e no final subiria ao pódio onde ouviria o hino nacional. Veja senhora, apesar de tudo é para mim que ele corria... Ele sempre soube que eu nunca o esqueci e queria me dar um presente.
- Está vendo, ele não ficou triste com sua atitude. Apesar de muito jovem soube compreendê-la e estava tentando lhe mostrar isto. As fotos dos jornais conseguem mostrar a sua expressão de alegria.
- Fiquei muito orgulhosa do meu menino. Tinha se tornado um homem e todos elogiavam sua força de vontade. Mas no fundo de minha alma eu não acreditava que ele pudesse realizar seu desejo. Nunca acreditei que ele pudesse ouvir o hino nacional tocar em sua homenagem... Para mim seria mais uma frustração. Durante aqueles dias não pude procurá-lo, eu queria tentar demovê-lo daquela idéia. A Senhora acha que agi errado?
- Claro que não, qualquer mãe evitaria tal sofrimento. Além disso, ele poderia cair e se machucar, ou mesmo sentir-se decepcionado. 
- Borges estava muito doente e precisava de meus cuidados. Ele não admitia que mais ninguém cuidasse dele. Mesmo quando precisava de um médico, impedia-me de chamá-lo, pois se recusava a pagar pelos serviços que considerava muito caro.
Com isso nunca pude acompanhar os treinos de Maurício. Na verdade, eu não sabia que ele levara a adiante a ideia de correr. A partir do momento que vi a reportagem saía todas as manhãs só para comprar os jornais e ver se via alguma notícia do meu atleta.
- Seu filho é um exemplo vivo de coragem e luta. Não podia deixar que seus problemas o impedissem de realizar seus desejos. 
- Borges teve uma crise renal e internou-se por aqueles dias. Tentei convencê-lo que meu menino também precisava de mim, mas Borges pedia para que eu não o deixasse sozinho naquele momento. O hospital ficava numa rua próxima a Av. Paulista, dele ouvíamos os fogos da largada da corrida. O trajeto da corrida de São Silvestre já era conhecido, sairiam as 23h:00min retornando por volta das 00h:00min. Foi difícil controlar minha ansiedade. De um lado Borges entre a vida e a morte, do outro meu filho prestes a realizar seu grande sonho. Os locutores acompanhavam os principais corredores e uma emissora de rádio seguia os passos de Maurício. Eu corria do quarto de Borges para a recepção do hospital para ouvir como estava meu filho e voltava rapidamente para ter notícias de Borges que apresentava um quadro delicado. O porteiro do hospital me informava que o rapaz deficiente estava muito mal classificado ocupava a última colocação. Meia-noite. Fogos por todos os lados. Chegam os primeiros atletas. O médico me chamou para noticiar o falecimento de Borges. Durante algum tempo fiquei desorientada e confusa. 
Meu marido acabava de morrer e meu filho corria na avenida ao lado para mostrar que podia viver normalmente. Em meio de minha angustia podia ouvir os fogos em comemoração ao ano novo que chegava. 
Saí correndo do hospital os seguranças pensaram que eu estava em estado de choque. Atravessei a rua já era quase 01 h:00 mim do Ano Novo quando pisei na Avenida Paulista. A festa tomava conta da noite. Enquanto todos se cumprimentavam fui até o pódio e os atletas não estavam mais lá, somente os foliões que comemoravam o Ano Novo. Acreditei que Maurício havia desistido afinal ele não conseguiria chegar. Naquele momento quis morrer. Perdi meu marido e meu filho não apareceu. Eu estava sozinha outra vez.
- Não minha filha. Deus estava colocando em seu caminho uma provação que você teria condições de suportar. Todos nós temos penitências a cumprir neste mundo. Você é muito forte e soube enfrentar mais esta etapa.
- Quando voltava para o hospital ouvi aplausos. Uma multidão abria caminho para um jovem que se aproximava da reta final. Maurício tentando manter-se firme apesar das dificuldades, sorria. Emocionada voltei e tentei aproximar-me, mas a multidão não permitiu. Corriam ao seu lado dando-lhe forças para continuar, pois faltava pouco para cumprir seu objetivo. Caminhei apressada ele já ganhava distância, comecei a ouvir o hino Nacional, quando consegui um pequeno espaço perto do pódio, vi... Lá estava Maurício. Todos em silêncio com as mãos ao peito cantavam o hino, cheguei mais perto e para minha surpresa soube que D. Nezinha havia pedido para os organizadores do evento que tocassem o Hino Nacional quando Maurício chegasse. Ela aproximou-se do pódio e Maurício entregou-lhe o ramalhete de flores erguendo seus braços como se também fosse uma vencedora. Naquele momento entendi que havia perdido uma batalha. Maurício homenageava sua verdadeira mãe, aquela que o criou, que o incentivou e que acreditou que ele era capaz. Todos queriam presenciar aquele momento, onde um jovem deficiente acabava de vencer mais uma etapa de sua vida. Não tive coragem de me aproximar. Saí de mansinho e fui embora. No dia seguinte os jornais não se cansavam de elogiar a força e a coragem do meu Maurício. Viúva e sem filho decidi morar fora da cidade. Comprei uma casinha no campo e me especializei em preparos de chás medicinais. Atendia aos moradores da cidade próxima e fiquei conhecida por curar os problemas de saúde daquelas pessoas. Eu adoro estes chás, eles me transportam para onde posso reviver momentos da minha vida.
- Oh de casa!... Tem alguém aí? Sim... Pode entrar, eu estava te esperando! Tome um chá de camomila que ainda está quentinho, eu sei que você gosta...

BAILARINA




Catarina chegou ao auge de sua carreira aos 18 anos de idade. Foi considerada uma das melhores bailarinas do Brasil. Era uma artista prodígio. Ganhou todos os prêmios possíveis, viajando o mundo e participando de várias companhias de teatro. Inaugurou sua academia em São Paulo onde muitos jovens cursavam música e dança de diversos ritmos. Porém, sua carreira fora abreviada. Hoje aos 42 anos de idade sofre por não poder exercer sua profissão devido à saúde debilitada. A conselho médico e orientação terapêutica partiu para o interior de São Paulo, hospedando-se na casa de sua Tia, onde desfrutaria de ótimo clima e águas medicinais que seriam benéficas para sua saúde prejudicada devido à poluição e o estresse da cidade grande. 

Assim, chegou numa cidade próxima a Águas de São Pedro, que oferecia águas medicinais, minerais, banhos de imersão, ar puro, que ajudariam a recuperar sua saúde. Nas proximidades havia várias fazendas repletas de pinheiros e eucaliptos que contribuía muito para a boa qualidade do ar. As cidades da região tinham como fonte de renda a cana de açúcar. Sr. João Pedro era um dos maiores produtores do local. Tinha muitos empregados que trabalhavam nos canaviais horas a fio, dia após dia, com pouco tempo de descanso. Foi ele que ao saber da chegada da tão influente personalidade providenciou uma recepção digna e convenceu o prefeito a lhe entregar a chave da cidade como homenagem. Catarina com seu carisma logo envolveu toda a comunidade. Não demorou muito para que ela começasse a enxergar as maravilhas da cidade. Ficou encantada com sua organização e com a receptividade das pessoas. Havia muitos jovens, adolescentes e crianças. 

Com o tempo notou que havia poucas atividades e que todos se limitavam em estudar, não tinham lazer. As crianças brincavam de rodas, de pega-pega, e os jovens sentavam-se nas calçadas para conversar. Catarina logo começou a fazer parte daquele círculo de amizades. A sua saúde a cada dia se estabilizava com os tratamentos terapêuticos ajudado pelo clima e banhos, acompanhado é claro de um rigoroso tratamento alopático para não ter recaída e se recuperar o mais breve possível. Era visível sua melhora. Caminhava por toda cidade, assim podia manter contatos e verificar as necessidades dos jovens, então teve uma brilhante ideia. Ao chegar em casa discutiu o assunto com sua tia, e logo recebeu todo apoio. Dona Mercedes era proprietária de um dos balneários mais frequentados pelos turistas que visitavam a cidade. Tinha uma sala que não estava alugada e cedeu de imediato para que Catarina concluísse sua ideia. 

Em pouco tempo Catarina trouxe de São Paulo equipamentos que estavam ociosos em sua academia para instalar ali uma filial. Estava motivada e divulgou em toda a cidade que daria cursos de dança e música para os jovens. As aulas eram gratuitas, fato que levou várias crianças a se matricularem. Apresentou sua arte através de vídeo, bem como a evolução da dança e da música através dos tempos e o interesse de países do primeiro mundo nesta arte. Catarina estava com a sala lotada. Aproveitou a oportunidade para criar vários grupos de dança atendendo a todas as faixas de idade. As aulas de música foram um dos motivos da grande afluência de jovens. Iniciou alguns ensaios e logo apareceram os talentos, jovens com vocação em todas as categorias deslumbram a experiente professora. 

Para sua alegria muitos alunos quiseram aprender balé e ginástica rítmica. Catarina trouxe de São Paulo uma professora de música e passou a se dedicar somente à dança, envolvendo-se com todos os grupos e ritmos. Após alguns meses de ensaio Catarina ficou extasiada ao ver desabrochar um casal de onze e doze anos, Priscila e Tiago, que tinham leveza e suavidade, pareciam flutuar. 
Com sua vasta experiência, entendeu que o destino a colocara naquele lugar para descobrir aqueles talentos, mas não se deixou levar por tamanha alegria e continuou a atender todos os alunos que durante meses ensaiaram exaustivamente e já se apresentavam nas festas da cidade, sempre com enorme sucesso. Catarina recuperou sua saúde completamente, nem parecia àquela bailarina que há alguns meses atrás chegou um tanto cabisbaixa. E demonstrava a todos que estava realizada novamente, pois estava exercendo sua profissão, não mais dançava, porém ensinava o que de melhor sabia fazer. Sentia-se gratificada por isso, durante as aulas que eram divididas em turmas, Priscila e Tiago eram os destaques, ela tinha a certeza que ambos nasceram para dançar juntos, faziam um par perfeito, dançavam qualquer ritmo, tudo que tocasse em matéria de música estava sob medida para seus passos, e cada coreografia parecia completar a música. 

Catarina, empolgada, e, após muitos ensaios inscreveu a dupla em um concurso em São Paulo, que iria selecionar os trinta melhores dançarinos para futuras contratações de diversas companhias de dança. 
Confiante no talento dos jovens, porém consciente da falta de experiência deles, via uma ótima oportunidade de envolvê-los num mundo cheio de magia. Acreditava que seria um estímulo para nunca desistir de sua arte, mas não podia deixar de mostrar-lhes a exigência do profissionalismo. O dia da apresentação chegou, com transmissão por circuito fechado para vários locais. 

A apresentação era por categorias. Priscila e Tiago obtiveram ótimas notas com exposição de mais de sessenta duplas em três dias de concurso. Eles se classificaram em trigésimo lugar, apesar da perfeita combinação de ambos. Outras duplas ficaram a sua frente por estarem em um estágio mais avançado, pois tiveram a oportunidade de se apresentarem em outras ocasiões mantendo o equilíbrio emocional, que faltou á Priscila e Tiago. 
Por serem muito jovens entenderam que aquela classificação era vexatória e foram expostos ao ridículo perante os amigos, vizinhos e parentes. Catarina com tantos anos de experiência colocou-os no colo acariciando-os e acalmando-os. Comentou sobre a importância dessa participação. Mostrou-lhes a importância de terem chegado em último lugar e dizia: 

- Olhe quantas duplas não se classificaram entre tantos inscritos, portanto vocês podem considerar-se felizes e privilegiados com esta classificação. Procurem olhar também a experiência que adquiriram na apresentação para um público exigente que aplaudiram e se entusiasmaram com vocês. 
Partindo desse ponto de vista a dupla se animou e estavam preparados para reiniciarem os ensaios assim que retornassem. 
A repercussão desta participação deu manchetes nos jornais da cidade, o que chamou a atenção do senhor João Pedro, pai de Tiago que permitiu que seu filho praticasse algum tipo de atividade que mais se aproximasse das danças de salão, pois ele quando jovem frequentou muitos bailes, achava o balé uma dança feminina, agravado ainda com o tipo de agasalho que mostrava os contornos do corpo do pequeno Tiago. Enfurecido e desequilibrado, foi até a escola e proibiu o menino de praticar e frequentar os ensaios. Apesar de todos os argumentos da professora aonde destacava o talento do garoto para a dança, o homem saiu arrastando Tiago pelo braço mostrando todo seu descontentamento, e falando alto dizia: 

- Você é um homem, e não pode praticar esse tipo de dança. Eu não vou ser alvo de comentários na cidade com relação a sua sexualidade. Jogou o menino no banco de trás e saiu numa disparada cantando pneu em direção a sua fazenda. A estrada ligava o município à rodovia principal. Em alta velocidade discutia com o menino que argumentava que iria continuar a dançar. Irritado Sr. João Pedro não observou que um dos caminhões carregado, sem respeitar a sinalização, saía de uma das fazendas, entrou na pista sem dar sinal atravessando na frente do carro, provocando uma manobra arriscada. João Pedro freou e desviou do caminhão, desgovernado adentrou muitos metros o canavial. Tiago sem o cinto de segurança foi parar no banco da frente por cima de seu pai. Felizmente fora só um susto, porém este susto agravou ainda mais a situação, pois João Pedro responsabilizou o menino por aquele acidente fazendo questão de lhe mostrar que se não fosse por ele não teria acontecido este fato que quase os levou a morte. Tiago triste e inconformado resolveu não acatar as ordens do pai. Continuou a frequentar as aulas às escondidas. Catarina já havia inscrito o casal para participarem de um evento na cidade e se apresentariam com um número que estava simplesmente perfeito, onde Priscila e Tiago dançariam como se flutuassem e ao erguê-la no ar encerrariam a apresentação. 

O dia da tão esperada apresentação dos alunos da professora Catarina chegou, o ginásio de esporte da cidade ficou lotado, todas as autoridades e empresários estavam presentes, não podia faltar ninguém. Principalmente Sr. João Pedro que mesmo contrariado com a apresentação tinha que demonstrar uma falsa alegria para os convidados e até mostrava que tinha algum conhecimento sobre o assunto. Tiago sabia que seus pais estariam presentes ao evento. Determinado resolveu por conta própria vestir-se de menina para disfarçar e participar da apresentação. Durante duas horas todo o ginásio ficou entusiasmado com a façanha que os jovens estavam protagonizando, era algo que levava o nome da cidade ás alturas, pois eles estavam elevando também a cultura na cidade. O início da apresentação se aproximava, as luzes se apagaram, apenas um refletor, uma faixa de luz cai sobre Priscila que fica de braço postado como se estivesse esperando alguém, nesse momento, outro facho de luz vai ao encontro de outra jovem que se aproxima, a música começa, as duas iniciam a dança, na plateia todos apreciavam os passos das dançarinas, em silêncio os expectadores se fascinam com tamanha harmonia e suavidade. Quinze minutos de espetáculo. 

- Tudo perfeito. Comenta Sr. João Pedro á sua mulher. 
- Mas, poderia ser um rapaz o parceiro da menina, a cena fora linda, mas não combina bem duas meninas dançando. Tiago certo de que fez a coisa certa, começou a tirar a roupa de menina, sem perder o passo, ficando somente com o agasalho colado ao corpo, em seguida tirou a peruca e o belo jovem apareceu diante de toda platéia, somente a professora e Priscila não se surpreenderam, pois apesar de não saberem da decisão de Tiago, nada mais podiam fazer. Neste momento Sr. João Pedro ruborizou-se, todos os convidados olharam para ele que ficou desorientado, a apresentação continuava estava na fase final. Tiago durante os rodopios da coreografia observou seu pai caminhando apressadamente dando a volta pelo ginásio, passou pela plateia e sem olhar para trás, retirou-se. A tristeza por alguns segundos tomou conta de seu coração, lágrimas começaram a rolar em seu rosto, mas com os aplausos de todos que estavam presentes e que acreditavam que aquela transformação de Tiago fazia parte da apresentação, não economizaram elogios, gritos, assobios e muitos aplausos, a dupla da noite foi um sucesso Tiago por um momento esqueceu sua dor. Agradeceu, sempre de mãos dadas com sua parceira. 

A partir desse dia o relacionamento entre pai e filho piorou. Não mais se falavam. Sr. João Pedro homem influente, observando a falta de documentação bem como autorização da prefeitura e o não pagamento de impostos por parte da academia, e ainda sem licença para exercer a profissão de professora, uma vez que ela estava afastada para tratamento médico, conseguiu por meios legais fechar a academia por tempo indeterminado. Catarina quando soube da decisão teve uma forte recaída, adoeceu novamente e precisou ficar de repouso. Mas para sua alegria começou a ouvir música em frente a sua casa. Pediu para sua tia abrir as cortinas e para sua surpresa viu seus alunos entre outros jovens inconformados com o fechamento da escola e com uma ação organizada juntaram-se ali e a homenageavam, dançando e cantando como se estivessem nas aulas. Era um sinal de protesto, que em pouco tempo foi acrescido de uma multidão que queriam mostrar a professora que estavam do seu lado. 

Catarina emocionada percebeu que não saberia mais viver sem aqueles jovens e adolescentes, mas nada poderia fazer no momento. 
Durante seu restabelecimento recebeu a visita de um importante executivo de uma companhia de dança que estava no ginásio no dia da apresentação e ficou encantado com Tiago. Gostaria de contratá-lo, mas logo foi informado que não teria a aprovação do pai do rapaz. E Catarina somente aprovaria a contratação se promovessem uns testes onde Priscila pudesse mostrar sua arte. E tentaria usar sua influência com a mãe de Tiago que aceitava a carreira que seu filho tinha escolhido. 

Como era de se esperar Tiago foi selecionado, Priscila apesar de ser uma das melhores dançarinas ainda não tinha conseguido fisicamente uma postura adequada, parecia ainda muito franzina apesar de sua elegância. Tinha como concorrentes algumas adolescentes excelentes também, que poderiam fazer par com Tiago, a companhia necessitava urgentemente de dançarinos e Tiago se enquadrou perfeitamente no projeto. E a grande dupla se separou pela primeira vez. Mesmo sem o consentimento do pai, mas apoiado pela mãe Tiago partiu com a companhia. 
O talento do rapaz foi rapidamente explorado, após ganhar vários concursos nacionais e internacionais iniciou varias turnês pelo mundo com uma das maiores companhias tornando-se o principal dançarino. 

Em pouco tempo o sucesso era uma realidade, agora era mundial, o jovem era reconhecido como revelação na arte de dançar e todos queriam vê-lo. Fixando-se em Paris deu continuidade aos estudos e fazia espetáculos quase que diariamente, apresentações que estavam com ingressos esgotados para toda a temporada. 
Priscila ficou na cidade e logo se tornou moça, desenvolveu rapidamente seu corpo e agora era uma bela jovem ensaiando na academia que conseguiu após uma pressão dos jovens e um movimento popular reabri-la. Além das aulas de dança e música com tanta gente apoiando, Catarina iniciou também uma nova atividade, passou a dar exercícios de condicionamento físico com ritmos suaves todas as manhãs aos trabalhadores que ficavam a espera do caminhão que iria levá-los para as fazendas. Em pouco tempo começaram os resultados os trabalhadores, passaram a ter mais disposição e menos cansaço, já não parecia tão pesado o trabalho e por consequência melhoraram a produtividade no corte da cana. 

Sr. João Pedro estava satisfeito com o progresso que fora notável, somente assim percebeu que Catarina tinha trazido para cidade um estímulo, não só para os jovens, mas para os trabalhadores também. E que seu trabalho era muito benéfico para aquela comunidade, passou então a apoiá-la em seu projeto, inclusive a ajudá-la na escola, com melhor espaço físico, equipamentos musicais e instrumentos. Foi ele o responsável pela construção do coreto da praça e a criação da primeira banda com patrocínio de suas fazendas. 

A mãe de Tiago, apesar de ver seu filho brilhar no exterior, sentia muita saudade, e queria tê-lo por perto definitivamente. Convenceu então João Pedro, para que o trouxesse de volta, uma vez que deixara de lado o preconceito com a dança, e até apoiava a escola da cidade. Sr. João Pedro, prontamente escreveu a seu filho, pedindo que voltasse, daria todo apoio que precisasse aqui no Brasil ao lado dos seus, e que certamente seria reconhecido pelo seu talento. Tiago, emocionado com a mudança de comportamento de seu pai imaginou a cena de estar dançando e seu pai entrando pela porta do estádio, fazendo toda à volta e sentando-se para assisti-lo. Não via a hora de voltar para casa. Quando Catarina soube de seu retorno promoveu uma grande festa para recepcioná-lo, gostaria de ver Priscila e Tiago dançando o último número como antes, já com técnicas, coreografias, e passos marcados. O Grande dia chegou, para todos da cidade a expectativa era grande em rever Tiago, hoje um grande dançarino, Priscila estava feliz, sabia que ao lado de Tiago, sua chance de se destacar seria maior. Tiago desceu do avião no aeroporto de Guarulhos em São Paulo já com o motorista a sua espera, pois os minutos contados para a apresentação. Tiago apressava o motorista, não queria se atrasar. Muitos o esperavam, e ele estava com saudades de todos. No ginásio lotado durante algumas horas os alunos se apresentaram com uma participação especial de dança dos trabalhadores do corte da cana. O final se aproximava, todos esperavam por esse momento, Tiago agora estava perto já podia ver a fazenda de seus pais. 

- Acalme-se em quinze ou vinte minutos estaremos lá, dizia o motorista. 
- Não posso chegar atrasado. 
Sr. Felipe, o homem que conduzia o carro já em alta velocidade olhou nos olhos de Tiago e disse: 
- Esta estrada é muito ruim e mal sinalizada, e nesses caminhoneiros que trabalham a noite não podemos confiar. 
- Deixa de bobagem, vá em frente. 
O espetáculo continuava. O ginásio lotado, as luzes se apagam todos esperando a entrada triunfal de Tiago, apenas, um foco de luz sobre Priscila, ela fica postada, braços abertos como se estivesse esperando seu parceiro, o som da música ecoa sobre todo o ginásio, ela dá os primeiros passos, a multidão se encanta, agora vários fachos de luzes coloridas se entrelaçam, Priscila dança suavemente, uma lágrima rola de seu rosto, o brilho provocado pelos holofotes centralizava à bela bailarina, ofuscando a vista de todos, mas era possível ver os contornos de um rapaz dançando e a conduzindo. A presença de Tiago foi sentida e a coreografia atingiu seu ápice, o público delirou Catarina vibrava, a alegria era tanta que andava de um lado para outro dizendo: 
- Que beleza, está magnífico. Assim que se encerrou a apresentação, e ao acender das luzes, puderam perceber que Priscila dançou o tempo todo sozinha, era uma verdadeira bailarina, mas onde está Tiago, todos perguntavam...Afinal esta festa seria para ele, será que não conseguiu voo para o Brasil? Naquele momento, entrou pelo ginásio o delegado da cidade, e ao se aproximar do Sr. João Pedro que se encontrava extremamente aflito com o atraso do filho o informou que um grave acidente tinha acontecido a mais ou menos quinze minutos na estrada, um caminhão saiu de uma de suas fazendas sem obedecer à sinalização e atravessou a estrada provocando um terrível acidente, onde ocorreram mortes instantâneas o motorista e Tiago.

LADRÃO DE NUVENS



Na última quinta feira de setembro Kall Rgtson, um alemão naturalizado, e o engenheiro Luiz Carbone, apresentaram às autoridades estaduais sua mais nova invenção. Um veículo elétrico adaptado com uma minúscula bateria com autonomia de 24 horas sem limite de quilometragem e dez minutos para recarga total, usando uma revolucionária tecnologia nano chip que promete revolucionar a indústria automobilística no mundo. 

Após a apresentação partiram para o ABC paulista. Atravessaram o centro de São Paulo a caminho da rodovia dos Imigrantes. Ainda encantados com desempenho do protótipo recebiam informações do computador de bordo quanto ao ótimo desempenho do veículo. De repente todo o entusiasmo cessou, uma pane elétrica obrigou-os a parar no acostamento às margens da rodovia. Ao saíram do carro observaram um objeto estranho no céu, uma enorme máquina nunca vista, que sugava as nuvens do céu como um buraco negro.

A nave inchava a medida que aspirava as nuvens, um ruído como um trovão vinha do céu. A máquina passou a balançar desgovernada e iniciou uma queda livre. Carbone ligou para 190 avisando aos policiais que estava acontecendo e foi ridicularizado diante da informação. Outros motoristas que viram o objeto também ligaram, mas não foram levados a sério. O objeto se estatelou em meio às montanhas e da mata virgem. Um grande volume de fumaça e nuvens começou a escapar do objeto, provocando uma enorme neblina que tomou conta da estrada. Carbone insistiu em ligar para as autoridades que demoraram a tomar uma atitude. As nuvens que saiam da nave encobriram a serra do mar. A visibilidade ficou totalmente comprometida. Em poucos minutos estavam diante da maior ocorrência da história das rodovias paulistas. 

Um mega acidente envolveu cerca de 300 veículos e o engarrafamento se estendeu por muitos quilômetros. Houve mortos e feridos. A causa do acidente foi a forte neblina que tomou conta da rodovia dos Imigrantes. ‘’A visibilidade era inferior a 10 metros’’ informou o comandante do 1º Batalhão da Polícia Rodoviária. “Não me lembro de ter visto um nevoeiro tão intenso assim”, comentou. Apesar da situação crítica, autoridades que administravam o Sistema Anchieta Imigrantes foram pegas de surpresa, pois as condições da estrada até então, eram excelentes. Kall e Carbone falavam com a imprensa sobre o ocorrido quando um policial se aproximou convidando-os a lhe acompanhar.

Os engenheiros saíram do local. A neblina só se dissipou três dias depois. Os destroços da máquina acidentada já haviam sido recolhidos sem deixar vestígio. O governo brasileiro em acordo com o governo americano aprovou em caráter de urgência, um financiamento para produção da nova tecnologia automobilística, com o compromisso dos inventores esquecerem o ocorrido. As ligações efetuadas para 190 inexplicavelmente desapareceram. Kall e Carbone foram novamente alertados para não comentarem sobre o acidente, nem tão pouco sobre a aparição daquele objeto.

CUCO


- “ Mamãe diz que ainda sou tão pequeno. Apesar de me sentir muito sozinho, sou feliz.... Não tenho irmãozinhos.... Ando pelo apartamento de um lado para outro. Corro..., brinco..., também...., não tem ninguém para me atrapalhar! . Papai e mamãe trabalham numa grande fábrica, saem bem cedinho e chegam muito tarde. Eles ficam falando que fazem faculdade e pós-graduação. Ás vezes não entendo bem o que acontece entre eles, mas tento fazer de tudo para não atrapalhar.
Aos finais de semana mamãe fica em casa, mas não consegue me dar atenção, além de arrumar a casa, passar roupas, fazer a comida. Passa o resto do tempo trabalhando no computador. Papai diz que é o responsável de um projeto para construção de galpões, que são vendidos para empresas. Este projeto toma-lhe também os sábados e domingos. Chega somente à noite e está sempre muito cansado, é uma pena! Porque a segunda-feira chega muito rápido, e eu nunca tenho a oportunidade de falar tudo que eu gostaria. Mamãe tenta me consolar e diz que todo este sacrifício é para mim, que um dia irei agradecê-los, mas eu queria que fosse agora, e eu quero tão pouco, apenas um sorriso deles, uma palavra que pudesse lembrar-me que sou uma criança amada. Mas tudo que escuto é “ Fique quieto; Vá brincar; Não posso falar agora; Vá jogar videogame; Abaixe o som; Desligue a tv; Não faça isso; Não faça aquilo; Está na hora de dormir”.
Eu tenho pouco tempo para ficar com eles, mas adoro esses momentos, pois quando mamãe está falando comigo, mesmo que seja para me dar bronca ou brigar, fico olhando para o rosto dela, mesmo zangada ela é tão bonita! E quando está em pé na minha frente; Minha nossa senhora! É enorme! Parece que pode encostar as mãos no céu e sinto-me tão pequeno perto dela que ás vezes mal consigo ouvir sua voz aqui embaixo, meu pescoço até dói de tanto olhar para cima e admirar a sua beleza. Quando ela está por perto, sinto-me mais forte, pois sei que com todo esse tamanho, ninguém ousaria me enfrentar. 
Eu não posso reclamar de nada. Tenho de tudo em casa, televisão á cabo, videogame, muitos brinquedos, vários super-heróis, entre muitos outros. Mas puxa vida! Não tenho nenhum amiguinho. Sou muito tímido, mas apesar disso, na minha escolinha só consigo arrumar brigas, pois todos sempre me deixam de lado, zombam de mim principalmente por causa da maneira que papai e mamãe me chamam, Cuco. Chamam-me assim desde quando eu era bebê, até pouco tempo eu não entendia o porquê, é eu que acordava para mamar sempre no mesmo horário. Eu sempre me emociono quando mamãe me telefona do trabalho dela, fico ansioso, esperando o telefone tocar, só para escutar a sua voz. 
Durante a semana mamãe acorda de manhã cedinho, prepara meu lanchinho da escolinha, e o meu café com pãozinho e bolachas, deixa tudo pronto sobre a mesa. O meu almoço e jantar fica numa lancheirinha que deixa a comida quentinha, aí é só comer. Mamãe me ensinou que depois de comer tudo, devo colocar meu pratinho numa máquina que lava toda a louça. Não temos empregada, porque meu pai diz que tinha que ser uma pessoa que ele pudesse confiar, e todas as que eles arrumaram, só davam dores de cabeça, porque chegavam atrasadas, faltavam, e aí acabavam brigando com elas, e iam embora. Papai diz que precisa guardar dinheiro, e que eu posso muito bem ficar sozinho, é só deixar tudo pronto para mim. 
Meu único amigo é o Tio Luiz, que é o dono da perua que vem todos os dias me buscar para ir á escolinha. Ele chega ao meio dia e me traz às cinco horas da tarde. Eu sempre me sento no banco atrás dele, porque os outros alunos ficam me aborrecendo e eu percebo que ele sempre me protege. 
Quando chego em casa, tomo banho e janto, brinco um pouquinho, ás vezes visto as roupas do papai e da mamãe, para senti-los mais de perto..., jogo videogame..., e faço a lição de casa, porque se eu esqueço minha mãe fica muito brava. Às vezes não consigo fazer toda a tarefa, aí levo uma bronca da professora no outro dia. Faço um pouco de tudo para o tempo passar logo, não vejo a hora de ver mamãe e papai chegar, lavo o rosto com água fria, e escovo os dentinhos, fico comendo salgadinhos assistindo desenhos na televisão, mas o sono vem com tanta força, que eu acabo dormindo no sofá antes deles chegarem.
Na segunda feira, quando papai chegou em casa recebeu do porteiro um pacote enviado por minha avó e segundo a carta que acompanhava aquele embrulho, ela estava de mudança e iria lhe fazer uma surpresa, dando-lhe aquele presente, pois era uma lembrança de quando ele era criança. Ao desembrulhar o pacote viu uma antiga peça, que estava guardada há mais de 30 anos no sótão da velha casa da fazenda. Deu corda e viu que estava funcionando, colocou-o na parede da sala e programou-o para funcionar á partir das oito horas da manhã. Quando o presente chegou, eu já estava dormindo.
Pela manhã, para minha surpresa ouvi que chamavam meu nome...
“Cuco... Cuco... Cuco...” estranhei, pois somente mamãe e papai chamavam-me assim, pulei da cama na certeza que eles não tinham ido trabalhar, logo imaginei que iriam brincar comigo o dia todo, levar-me para passear e teria a oportunidade de dizer o quanto gosto deles e que sinto muita saudade. Com certeza mamãe iria lembrar-se de agradecer as rosas que trago todos os dias para ela. Levantei-me e corri pela casa.
- Mamãe,...Papai... Onde vocês estão? Brincando de esconde-esconde comigo? 
Fui ao banheiro, andei pelos corredores e ao chegar na sala ouvi novamente,
“ Cuco, Cuco...Cuco...”. Fiquei todo arrepiado. De onde vinha aquela voz? Observei que vinha de uma caixa pendurada na parede, era velha, uma cor horrível, não combinava com os móveis da mamãe. Notei que um pequeno pássaro saia lá de dentro e me chamava, “Cuco, Cuco”, com certeza era uma pessoa da família que me queria muito bem. Meu coração bateu forte, a voz era firme, porém suave e a cada “Cuco” que ele falava parecia uma música que tocava nos meus ouvidos. Fiquei tão contente que chorei de alegria, pois ele estava ali e queria conversar. Coloquei uma cadeira, subi, bati em sua portinha, pedi que ele saísse e falasse comigo outra vez. Falei baixinho para não assustá-lo. 
- Você chamou meu nome! Você é meu amigo?
Mas ele parecia tímido como eu. Chamou-me várias vezes e depois que eu atendi escondeu-se de mim, mas eu sabia que ele estava ali e logo que a vergonha passasse ele voltaria a me chamar. Corri, escovei os dentes, tomei meu café, mas sempre de olho na caixinha da parede. Após algum tempo ele apareceu, meu coração disparou, larguei tudo que estava fazendo, ele estava novamente me chamando... “Cuco... Cuco...Cuco....” Era tão bonito, quando aquele pássaro saia daquela pequena caixinha comecei a achar que eles tinham uma cor maravilhosa, e para mim a nossa casa não combinava mais com tanta beleza. Ele parecia feliz, mas logo se recolheu novamente. Durante a manhã fomos ficando íntimos, antes que eu fosse para a escolinha, ele voltou por diversas vezes á me chamar, e passei a chamá-lo de meu irmãozinho, porque só ele, papai e mamãe me chamavam de Cuco.
Ao voltar da escolinha, quando o Tio Luiz me deixou em frente ao prédio, corri para casa e logo que cheguei no corredor ouvi o meu irmãozinho me chamar “Cuco... Cuco... Cuco...”. Percebi que ele tinha ficado para fora da casinha e não tinha se escondido, fiquei super contente, pois consegui vê-lo mais de perto. Estava quieto. Perguntei por seus pais; e neste momento pude ver que seus olhinhos encheram de lágrimas. Olhei dentro da casinha e vi que ele também estava sozinho, só então entendi, ele precisava de um amiguinho, assim como eu, e me escolheu, agora nós dois estávamos juntos e muito contentes.
Comecei a contar as minhas alegrias e tristezas. O telefone tocou, eu sabia que era a mamãe, pedi licença ao meu amiguinho, agora meu irmãozinho e atendi ao telefone, pela primeira vez, eu não a deixei falar, tentei demonstrar a alegria que eu estava sentindo. Agora tinha alguém que se importava comigo e não queria sair do meu lado. Mamãe não entendeu nada e perguntou assustada quem estava comigo. Antes que pudesse responder desligou o telefone e ligou na portaria, logo o porteiro do prédio batia na minha porta, veio saber quem estava comigo, pois minha mãe estava preocupada. Quando mostrei o meu novo amiguinho, ele deu uma gargalhada, acariciou minha cabeça e ligou para minha mãe explicando-lhe alguma coisa e desligou o telefone.
O pássaro ficava ali parado eu não tirava os olhos dele, fiquei falando e ele somente me ouvia, e só de vez em quando chamava meu nome, como se respondesse a tudo o que lhe contei. Durante os dias que seguiram a nossa convivência aumentou e eu já podia ouvi-lo. Ele queria saber porque eu andava pela casa esfregando as mãos nas paredes, porque eu entrava no banheiro da mamãe, sentava-me na cadeira da cabeceira da mesa e fingia falar com alguém, tentei esconder dele, fiquei com tanta vergonha! Mas meu amiguinho era insistente, mesmo da portinha de sua casa olhava-me fixamente e me pedia para conversar com ele. Tentei resistir, mas entre verdadeiros amigos não se pode esconder nada. Pedi para que ele prestasse atenção, e expliquei que esfregava as mãos nas paredes porque sabia que era por ali que mamãe passava e assim eu podia senti-la por perto. Entrava no banheiro dela para sentir o seu perfume no ar. Eu podia vê-la andando de um lado para outro da casa e eu sigo seus passos para me sentir mais próximo, sento-me á cadeira na ponta da mesa, porque aos domingos quando meu pai não vai trabalhar senta-se ali e diz com sua voz grossa que se sente um super-homem por ter uma família como a nossa. Isso me dá tanta alegria, porque eu acho que ele é um super-homem mesmo. O meu amiguinho do alto da sua casinha estava emocionado com as minhas revelações e perguntou-me se meus pais sabiam disso, fiquei preocupado com aquela pergunta e respondi:
- É claro que não. Eles não podem saber que tenho saudades deles, poderiam achar que estou ficando doido e você tem que me prometer que não vai contar nada para eles, preciso que prometa.
Meu amiguinho chamou-me várias vezes “Cuco... Cuco... Cuco...”, então eu entendi que tínhamos feito um pacto de silêncio, só que o danadinho convenceu-me a esperá-los naquela noite. Eu tentei dizer que o sono era muito forte e eu acabava dormindo antes que eles chegassem.
Meu amiguinho sussurrou-me uma grande idéia. Então peguei meu colchãozinho e meu cobertor e coloquei atrás da porta da sala, porque assim que eles chegassem teriam que me acordar e eu poderia falar tudo que estava acontecendo comigo e com meu amiguinho. Mas o sono era pesado e não acordei. Quando meus pais chegaram tiveram que empurrar a porta e observaram que eu estava dormindo, eles não entenderam porque eu estava ali, pegaram-me no colo para me levar para a minha caminha. Eu percebi que estava no colo da mamãe, sentia o seu perfume que era tão gostoso! Tentei contar a minha alegria por ter um amiguinho, mas eu não conseguia, meus olhos nem abriam, estava com muito sono e queria dormir. Senti quando ela me beijou, queria pedir que me acordasse antes que fosse trabalhar, eu precisava contar-lhe sobre meu amiguinho. Mas quando ouvi“ Cuco... Cuco... Cuco...”, e acordei eles já haviam saído outra vez.
Gritei de raiva, fui até a janela na esperança que me ouvissem, mas não escutaram, sentei-me embaixo da casinha do meu amiguinho e conversamos a manhã toda. Contava-me suas estórias e eu as minhas. Quando o Tio Luiz veio me buscar para ir á escola eu estava chorando. Perguntou-me porque eu estava tão triste, pois ele já me conhecia há muito tempo, desde o maternal quando entrei na escolinha e sabia quando eu estava triste, fazia brincadeiras para me arrancar um sorriso, mas eu nem ligava.
Ao chegar na escolinha fui chamado na diretoria, pois uma senhora havia reclamado que suas rosas estavam sendo roubadas e acusou-me. Fiquei sem saber do que ela falava, pois a única coisa que eu fazia era colher do jardim de uma casa perto da escola, uma rosa para dar de presente para a minha mãe, queria vê-la contente quando chegasse do trabalho. A diretora disse-me que eu ficaria de castigo até que meus pais fossem me buscar e pagasse o prejuízo que causei a aquela senhora. Ligou para mamãe, que pediu para ligar para meu pai, pois tinha um compromisso inadiável e não poderia comparecer na escola, e com certeza ele se encarregaria de buscar-me. Assim fez a diretora e meu pai confirmou que iria após cumprir alguns compromissos. As horas passavam, eu estava sentado numa cadeira dura e desconfortável, a diretora disse-me que eu não poderia me levantar, mas apesar de cansado eu estava contente, pois o meu super-homem viria salvar-me. Com certeza falaria poucas e boas para essa velha rabugenta. Os alunos passavam pela janela da diretoria e faziam caretas e gozações por me ver ali de castigo, entravam no perua do Tio Luiz, que contou por várias vezes os alunos, percebendo minha ausência, foi conversar com a diretora, que lhe disse que eu só iria embora quando meu pai viesse me buscar. O Tio Luiz olhou-me pela vidraça balançou negativamente a cabeça e despediu-se de mim. Percebi que seu olhar era triste. Meu coração parecia estar sendo esmagado com as mãos, mas por outro lado sabia que meu pai logo iria chegar, até porque já começava a chover e anoitecer, e eu não sabia ir embora sozinho para casa. Eu estava pensando no meu amiguinho, pois tinha certeza que ele deveria estar muito preocupado com a minha demora, e ele também estava sozinho em casa sem poder fazer nada. O portão da escola se fechou. A diretora rabugenta saiu e disse-me:
- Ôh! Pequeno ladrão de rosas. Pode ir embora, porque ninguém vem te buscar. Seu pai nem ao menos ligou para dizer que não poderia vir. 
Eu tinha tanto medo dela que não consegui lhe dizer que não sabia ir para casa sozinho. Comecei a chorar e saí pela porta da frente. Andei de um lado para outro, chovia sem parar, vi quando o carro da diretora passou por mim e foi embora, corri atrás dela para pedir socorro, mas ela nem me viu, já estava escuro. Minhas roupas estavam molhadas e grudava no meu corpo, eu sentia frio. Estava desesperado e com muito medo. Agachei-me num cantinho, cobri a cabeça com a mochila para tentar abrigar-me da chuva e esperar por meu pai. Trovejava e relampeava, eu chorava de medo, estava apavorado, não conseguia ver nada. Ouvi um barulho de motor de carro, tive a certeza que era meu pai, levantei a cabeça e vi do outro lado com um sorriso nos lábios, o Tio Luiz, veio em minha direção, pegou-me no colo como se eu fosse um bebezinho, procurou proteger-me da chuva. Eu chorava tanto que molhava ainda mais a sua camisa, ele apertou-me em seu peito e muito emocionado dizia-me que jamais deixaria seu pequeno menino sozinho e que voltaria quantas vezes fosse preciso, mas nunca me abandonaria. Trouxe-me para casa entrou no apartamento, deu-me um banho quente, pôs meu pijaminha e deu-me um chá quentinho, colocou-me na cama, beijou-me o rosto e carinhosamente despediu-se dizendo que voltaria amanhã para levar-me á escola.
Meu amiguinho me chamou várias vezes, mas estava com a voz fraca e pausada, ora grossa, ora fina, quase não pude ouvi-lo direito e pronunciava meu nome como se também estivesse me culpando por ter roubado as rosas.
“Cuooocuoco, cuuuuuuuuuuuuuuuuuco...cuuucccooooo... cuooooooooo.....”, eu estava envergonhado por ter feito aquilo, mas para mim não tinha maldade, só queria agradar minha mãe.
Com certeza meu pai não foi me buscar na escola porque estava triste comigo e jamais voltaria para casa. Tentei conversar com meu amiguinho, mas ele não me respondeu. Estava muito triste, até o meu único amigo estava chateado comigo, ficava parado não se movia, até o relógio que ficava em cima da casinha parou de funcionar, todos estavam contra mim, então lembrei que o único amigo que eu tinha de verdade e que gostava de mim era o Tio Luiz. Eu estava triste, com um aperto no meu peito. Peguei uma roupa e meu cobertorzinho. Já que ninguém gostava mais de mim, resolvi sair de casa e morar com o meu Tio Luiz, aproveitei um descuido do porteiro e fui para a rua. Já era muito tarde, ainda chovia um pouco, queria encontrar o Tio Luiz, mas não sabia onde encontrá-lo, andei por ruas escuras até chegar em uma praça. Cansado de tanto andar escondi-me atrás de um banco. 
A Chuva já tinha parado, estava com muito sono, adormeci e comecei a sonhar. Eu ouvi o meu amiguinho me chamando:
“Cuco... Cuco...”. A vontade de ter um amigo por perto era tão grande que eu acordei e pensei que estava em casa. Bobagem! Ele não poderia ter me encontrado, mas continuava a ouvir aquelas vozes me chamar:
“Cuco... Cuco...”. Ergui a cabeça por cima do banco e vi algumas pessoas vindo em minha direção, a alegria tomou conta de mim. Tio Luiz á frente, em seguida o porteiro do prédio, mamãe e papai logo atrás. Todos cansados, pareciam preocupados, gritavam o meu nome.
- Eu tinha certeza que estava sonhando, pois meus pais não iram se misturar com outras pessoas, principalmente á noite a minha procura, mas resolvi sair e levantei-me segurando meu cobertorzinho e fui ao encontro deles. Minha mãe me avistou á distância, correu até mim, chorava e gritava:
- Meu filho, meu filhinho, o que você está fazendo aqui? Eu estava aflita. 
Pegou-me no colo, me beijou várias vezes e abraçou-me. Meu pai se aproximou e nos abraçou também. O Tio Luiz e o porteiro também vieram até nós. Olhei para ela e disse:
-Eu tenho saudade de vocês, queria tê-los por perto mais tempo e pensei que estivessem com raiva de mim por eu ter pegado as rosas, eu não roubei, pensei que pudesse colher, eu não queria dar prejuízo a ninguém. Também achei que por causa do roubo das rosas ninguém gostasse mais de mim, por isso não foram me buscar na escola, e nem ligaram para mim! Então resolvi morar com quem gosta de mim, o Tio Luiz, e eu vim procurar ele, mas não sei onde ele mora!. 
Meus pais sentaram-se no banco da praça e tentaram de todas as formas me convencer que eu estava errado e que gostavam de mim, que iriam mudar seu comportamento. Pediram-me desculpas pela falta de atenção comigo, e todos choramos juntos.
Voltamos para casa. Papai consertou o meu amiguinho. Ele não tinha me abandonado somente precisava também de carinho e uma tal de corda para funcionar, fiquei muito contente de vê-lo novamente chamando-me, papai me explicou porque ele precisava de cordas. 
A partir deste dia mamãe passou a chegar mais cedo em casa, percebi que eles estavam mais unidos, pois mudaram o horário de trabalho. Quando papai chegava do serviço dos finais de semana, íamos brincar e jogar bola, mamãe passou a nos acompanhar, e sempre dávamos um jeitinho de levar meu amiguinho junto.

A COOPERATIVA


Iniciava-se mais um período turbulento na economia. Era inevitável o corte de funcionários. De certa forma a globalização afeta nosso país, que sofre algumas conseqüências do que acontece em outras nações.

Henrique um executivo poderoso de uma grande multinacional, apesar de 28 anos de idade, com suas estratégias chegou ao cargo de diretor, era irreverente, calculista, não media esforços para conseguir o que queria. Era formado em uma universidade nos Estados Unidos e cheio de ideias do primeiro mundo muito inovadoras.

Para Henrique não havia limites nem obstáculos. Aos olhos de alguns empresários conservadores, suas ideias eram arrojadas e ousadas demais, por isso não conseguiu apoio necessário para implantá-las. Eles temiam que os planos de Henrique prejudicassem o controle e a administração da empresa. Após várias divergências com a diretoria fora demitido, no entanto, por sua qualificação, já havia recebido outras propostas de trabalho, porém, não as aceitou, considerou que merecia tirar férias. Após alguns dias de descanso fora do país, retornou ao Brasil e foi passar um período na casa de sua mãe em São Nicolau, interior do estado, a dez quilômetros da Rodovia principal. Possuía aproximadamente vinte mil habitantes. A situação econômica na cidade era caótica. A prefeitura estava falida. O número de desempregados atingia 60% da população. Os jovens não tinham perspectivas de trabalho, poucos eram os trabalhadores que possuíam registro em carteira, e muitos eram diaristas para o corte da cana-de-açúcar que lutavam todas as manhãs para serem escolhidos para um trabalho quase escravo. O pouco dinheiro que recebiam gastavam nos armazéns controlados pelos próprios fazendeiros.

Henrique era experiente em liderar e organizar equipes. Sentiu naquele momento que poderia ser sua grande oportunidade de explorar seus conhecimentos e ideias que os empresários nunca permitiram que ele realizasse. Aquela situação desumana à sua frente, foi a motivação que precisava para por em prática o que havia aprendido. Luci, sua mãe preocupou-se em vê-lo tão entusiasmado, pois a vida em São Nicolau era muito diferente da cidade grande. Os fazendeiros dominavam aquela região a três gerações, mandavam prender e matar todos que cruzassem seus caminhos.
Henrique acreditava que era exagero por parte de sua mãe, afinal viviam numa democracia.

Empolgado começou a pesquisar itens necessários para expor seu projeto. Era audacioso e em pouco tempo descobriu todos os pontos fortes e fracos á serem superados. Integrou-se com algumas pessoas de certa influência, e com o auxílio do padre da cidade que aprovou suas ideias, iniciou algumas reuniões com a comunidade local. Precisava ver de perto todos os métodos de trabalho.
Todas as manhãs a praça central ficava repleta de homens e mulheres disputando um espaço com braços erguidos pedindo por uma vaga naquele dia. A luta pela sobrevivência era cruel, todos que ali estavam tinham famílias para sustentar. O cenário era humilhante. Entre uma multidão, apenas quatrocentas pessoas eram escolhidas diariamente. Quem os selecionavam eram os próprios caminhoneiros, que paravam os caminhões à frente e chamavam por mais duzentas pessoas, oferecendo pagar somente a metade do preço pelo mesmo trabalho. Sem muitas alternativas, muitos corriam atrás do caminhão e subiam desesperadamente na carroceria e logo as vagas eram preenchidas.

Henrique acordava cedo e se infiltrava no meio dos trabalhadores para o corte da cana, trabalhou alguns dias, era sempre designado ao trabalho, pois era forte e robusto. Precisava conhecer todas as dificuldades que aquelas pessoas sofriam, além de criar empatia e conquistar a confiança dos mesmos.
Inconformado com a situação daquelas pessoas deu início a seus planos. Teve o apoio do prefeito e criou uma cooperativa com os desempregados da cidade. Cadastrou todos que tinham interesse. Alugou um galpão na periferia da cidade com mais de trinta mil metros quadrados, e começaram a reformá-lo com o trabalho dos próprios associados.

Anunciou em vários jornais, inclusive os da capital, solicitando doações de máquinas que estivessem ociosas, fora de uso, ou mesmo quebradas, e tudo que pudesse ser recuperado para a cooperativa de São Nicolau. O retorno foi inesperado, centenas de pessoas colaboraram e colocaram à disposição várias máquinas com diversas finalidades de uso. Desde fresadoras, injetoras a ar, computadores, e muitas máquinas de tecer.

Receberam mais de duas mil peças. O salão paroquial foi cedido pelo Padre Zezinho, e muitas delas tiveram que ser entregues nas casas dos moradores interessados no projeto de Henrique. Conseguiu uma parceria com uma escola de São Paulo que enviou instrutores para um curso técnico sobre o manuseio das máquinas. A cooperativa crescia a cada dia.

Após várias reuniões com os associados descobriu o potencial e a aptidão de cada um e aplicou nos trabalhos da cooperativa, de maneira que o aproveitamento e a produção eram satisfatórios. Henrique conhecia um artesão do interior da Bahia, e convidou-o para iniciar aulas práticas de artesanato em argila e cerâmica, onde muitos tiveram a oportunidade de descobrirem que eram talentosos, e logo algumas famílias estavam criando objetos de boa qualidade.

Apresentou a prefeitura um projeto para ampliar o turismo na cidade. Sua ideia foi aprovada, e recebeu dela uma área com alguns alqueires chamada de Boa Esperança. Com o auxílio do artesão e de muitos cooperativos, construíram em cada lote deste local, miniaturas de aproximadamente um metro e meio de altura de monumentos históricos, como o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, o Palácio do Planalto, a Torre Eifel, a Estátua da Liberdade, a Casa Branca, as Cascatas do Iguaçu, as Pirâmides do Egito, entre outras. Boa Esperança passou a ser visitada por todos que chegavam à cidade. Todos os artesanatos criados pelos integrantes da cooperativa, inclusive suvenir das mesmas obras, passaram a ser vendidos aos visitantes.

Na parte sul de São Nicolau havia uma nascente que desaguava num afluente de um rio local. Seu plano seria formar um lago que circundasse toda a cidade, transformando-a numa ilha de quase dez mil quilômetros quadrados, com largura e profundidade suficientes para proporcionar passeios de barcos por toda a cidade, para suas margens contrataria jardineiros que fariam trabalho artesanal com as árvores contornadas em diversos formatos, transformando a paisagem num verdadeiro jardim botânico. Sua ideia mais uma vez foi aprovada, e logo houve patrocinadores e investidores para o projeto.

A cooperativa cadastrava novos associados, e ensinava-lhes outras profissões. Henrique tinha como meta transformar a cidade em têxtil, pois receberam mais de oitocentas máquinas para a tecelagem. Acreditava que não seria difícil convencer as mulheres a aprender o ofício. Teve o apoio de um fazendeiro que investiu na compra da matéria-prima, e assim muitas jovens e senhoras envolveram-se neste trabalho e logo estavam produzindo diversas fazendas, tecidos de boa qualidade e malhas que comercializavam em São Paulo e cidades Serranas.

Através de alguns contatos com Henrique, e incentivo das autoridades locais, algumas indústrias instalaram filiais em São Nicolau. Quase todos os trabalhadores estavam registrados na cooperativa. Qualquer empresa, fazendeiro, lojista e até mesmo a Prefeitura que necessitassem de serviços como pinturas, reformas e construção tinham que contratar através da mesma. O corte da cana-de-açúcar somente era liberado com salário e condições dignas, transporte adequado, e com marmitas quentes oferecidas pelos fazendeiros. A sociedade criou micro-empresas que estavam ligadas a todas as máquinas doadas. São Nicolau já era conhecida como a cidade do novo turismo e já tinha aspectos totalmente diferentes de anteriormente.

Na entrada da cidade foi construído um portal, que recepcionava os visitantes e turistas com segurança dia e noite. Para entrar ou sair de São Nicolau todos tinham que passar por uma ponte construída por cima do grande lago onde havia os passeios de barco e canoas, assim como as de Veneza na Itália, que eram manobradas por barqueiros uniformizados com o símbolo da cooperativa. A cidade oferecia pousadas e hotéis reestruturados, além dos diversos pontos turísticos criados para agradar pessoas que vinham desfrutar do lazer. Havia ainda a gruta de São Nicolau que jorrava água das pedras, feita artificialmente, mas era tão perfeita que ninguém notava. E em pouco tempo já se faziam romarias, pois alguns milagres foram creditados a ele, e ninguém saia sem levar o santinho em barro feito pelos moradores da cidade. As opções de compras no centro eram algo que atraiam turistas de todas as partes. Desenvolveu-se um esquema de iluminação colorida na cidade onde a noite era possível ver à distância o contorno de símbolos,como coração, estrela, barco, e o nome da cidade em destaque.

Foi necessário também que Henrique desenvolvesse um projeto para chegada de centenas de ônibus de excursões. Construíram um amplo estacionamento onde cada ônibus recebia uma faixa colorida e seus ocupantes um boné da mesma cor, com o adesivo da cooperativa, isso para evitar os transtornos causados para os visitantes na hora da chegada ou da saída, assim era possível identificar os participantes da mesma excursão. Uma comissão divulgava a cidade através de folhetos e cartazes em outras regiões.
Henrique não media esforços para conseguir manter a cidade em alta temporada o ano todo, pois não dependiam do clima e nem das ocasiões comemorativas. Através de seus conhecimentos, Henrique conseguiu com uma grande emissora de televisão, fazer reportagens enaltecendo o trabalho da comunidade em prol da cidade. A cooperativa criou micro empresas têxteis e controlava toda a produção e os canais de vendas. Desta forma os proprietários tinham tempo disponível para atender aos visitantes da cidade, pois todos que por ali passavam acabavam adquirindo algo. O artesanato era um ponto favorável para as pessoas de pouca formação, pois todos eram treinados e conseguiam produzir verdadeiras obras de arte. Toda a produção era comprada pela cooperativa e depois colocada à venda para atender aos turistas. Inclusive quadros pintados a mão por novos talentos da cidade que não se preocupavam com nada, somente em pintar, pois a cooperativa comprava tudo que fosse criado, e para incentivá-los contratava-os para divulgarem suas obras e vendê-las. Havia ainda outro serviço oferecido, eram passeios de charretes pela cidade e miniaturas de carrinhos empurrados por senhores aposentados, levando crianças de um lado para outro em torno da praça.

A cooperativa comprou todos os terrenos disponíveis no centro da cidade e construiu prédios de quatro andares, e com doze apartamentos cada, adensando o centro. Henrique acreditava que não era vantajoso investir nos bairros, pois para isso haveria a necessidade de estruturar com água, luz, asfalto, esgoto, além de dispersar as pessoas do centro da cidade, pois queria manter o ar interiorano aos turistas. Assim quase todos os moradores de São Nicolau eram trabalhadores da cooperativa, que enriquecia a olhos vistos e também eram controlados por Henrique que era respeitado e tinha credibilidade de todos.

Tornara-se poderoso, era o presidente da cooperativa, participava das empresas como diretor, conselheiro, acionista e de outras era proprietário. A economia local estava em suas mãos. Todos tinham que pagar as suas mensalidades em dia para continuarem a desfrutar das benesses da cooperativa. A riqueza chegou para todos. O índice de mortalidade chegou a zero nas crianças recém-nascidas. Havia escolaridade para as crianças e jovens da cidade. Uma multidão visitava São Nicolau todos os finais de semana trazendo muito dinheiro e benefícios para a população, que eram todos funcionários e trabalhavam para um só órgão.
A cooperativa era quem se preocupava com a estratégia de produção e distribuição, contratando e fechando grandes negócios para o micro empresário. Os fazendeiros não conseguiam vender suas produções, pois a cooperativa tinha de certo modo monopolizado a compra do cultivo, transformando-se numa forte atravessadora entre o produtor rural e os pontos de vendas, elevando a receita bruta da cooperativa e se tornando a principal compradora de toda região, ditando preços e condições de pagamento. A contratação de funcionários para os trabalhos na lavoura passou a ficar dispendiosa. Incomodados com aquele monopólio decidiram reagir. A mídia e os fazendeiros começaram a demonstrar muita preocupação e promoveram uma reunião secreta, onde estavam presentes latifundiários de outras regiões do estado, preocupados com o sucesso alcançado pela Cooperativa de São Nicolau, que ganhava simpatizantes de todo o Brasil. Não era possível concorrer com tamanha estrutura, e se alguma providência não fosse tomada logo, estariam presos ás condições das cooperativas, sob o comando de um só líder.

Precisavam desarticular esse movimento e a única maneira seria expor Henrique perante a população fazendo com que ele perdesse a credibilidade e a confiança dos funcionários e associados da cooperativa, pois eles não enxergavam que foram dominados e estavam sendo mantidos sob um controle regido, e que os impediam de administrar seus próprios negócios, com o agravante de não poderem conhecer seus principais fornecedores e clientes, gerando uma dependência extraordinária a um homem chamado Henrique. Imediatamente alguns homens foram infiltrados na cidade para desencadear um clima de insegurança, mostrando aos trabalhadores os riscos que eles estavam correndo. Houve reuniões com lideres políticos e foram consideradas as preocupações onde criariam um pretexto para divulgar o malefício que uma estrutura assim podia trazer para toda a sociedade, pois se nada fosse feito, em pouco tempo poderiam ter outras cidades sendo controladas da mesma forma e politicamente isso não era conveniente.

Os rumores na câmara dos deputados e na imprensa logo chegou aos ouvidos do governo, onde percebeu que não tinha coordenação política na economia da cidade, pois o prefeito e os vereadores foram indicados e eleitos pela própria cooperativa. Isso deu margens à críticas do ministro da justiça que estava aliado aos ruralistas, e quando questionado por um repórter sobre o que estava acontecendo em São Nicolau, não perdeu a oportunidade de criticar o regime ali implantado por um homem com ideias duvidosas, pois tinha alienado toda a população.

A polícia e os funcionários públicos federais eram descriminados de maneira que não conseguiam trabalhar na cidade, tendo que se sujeitar a escolha por parte de Henrique, que também tinha ilhado a cidade, não permitindo o livre direito de ir e vir das pessoas, pois todos tinham que pagar pedágio se quisessem entrar ou sair da cidade. E ainda havia aproveitado brechas nas leis que regiam as cooperativas e vinham se apropriando da isenção de impostos revertendo o lucro para interesses ainda não apurados. Os governantes não se calariam enquanto não conseguissem mostrar a população brasileira os malefícios de uma política implantada por um homem considerado desajustado, como Henrique. Um repórter questionava o ministro como que aquele município tão miserável, em poucos anos tornou-se uma cidade com uma das melhores condições de vida, onde todos tinham emprego, casa própria financiada pela cooperativa, 100% das crianças e jovens tinham escola. Onde estariam os malefícios? E qual seria esse regime que preocupava as autoridades?

O ministro ruborizado encerrou a entrevista respondendo que era o comunismo. Naquele momento todos se entreolharam questionando-se sobre o regime comunista. A confusão estava formada, houve muitas discussões sobre o assunto e o sistema da cooperativa. Naquela semana o governo com uma ação sem precedentes, decretou uma medida provisória cancelando por tempo indeterminado as leis que regiam as cooperativas de funcionários, limitando-os a exercer funções administrativas, impedindo-os de realizarem qualquer tipo de negociações. O exército invadiu a cidade criando barreiras e impedindo qualquer pessoa entrar. Ninguém poderia sair com qualquer produto fabricado pela cooperativa. Os direitos políticos e sociais de Henrique foram suspensos até que fossem apuradas se havia irregularidades cometidas por ele. Aos olhos do governo o mesmo teria usado de subterfúgios para desenvolver um regime repudiado pela constituição brasileira. Os soldados diziam que eles foram vítimas de um homem ganancioso, que aproveitou da inocência da população e em pouco tempo tornou-se um homem milionário.

Em pouco tempo os turistas deixaram de visitar a cidade, que começou a passar por dificuldades. Já não se comercializavam mais as roupas e artesanatos. As empresas fecharam suas filais e todas as encomendas que tinham origem de São Nicolau foram canceladas. O patrimônio que levou três anos para ser construído, em menos de três meses foi completamente aniquilado. O líder do exército convocou uma reunião na praça central com todos os micro-empresários, funcionários e a população, onde esclareceu o motivo pelo qual o governo havia assumido a direção da cidade, pois a política implantada por Henrique fez com que a população ficasse sob a possessão de um único homem, que interessado em dominar, criou um sistema que impediu a livre negociação, entre os comerciantes e os produtores, e propositalmente assumiu esse dever para não deixar que os moradores tivessem dependência própria.
A situação era crítica, as dívidas dos moradores eram enormes, alguns tinham investimentos fora da cidade, outros não recebiam há mais de três meses e já começavam a passar dificuldades. Os bens da cooperativa estavam bloqueados por ordem da justiça. A crise estava alarmante e sobre uma pressão do estado, do exército e dos fazendeiros, população revoltada com Henrique deixou de apoiá-lo. Reuniram-se em frente à sede da cooperativa e iniciaram um quebra-quebra, com infiltração de desordeiros e homens contratados pelos fazendeiros passando-se por trabalhadores totalmente desequilibrados.

Agrediram o jovem Henrique expulsando-o da cidade chamando-o de comunista e aproveitador. Diziam que ele havia enriquecido à custa da população carente. Henrique tentou dialogar. Percebeu que a população estava servindo de massa de manobra por parte dos governos e dos fazendeiros. Sentiu que corria perigo de vida e que não seria mais possível controlar aquela situação. Abalado saiu da cidade escoltado por policiais e soldados enviados pelo governo. Foi abrigado atrás de escudos e levado para outra cidade onde seu paradeiro é desconhecido.

São Nicolau passa agora por muitas dificuldades, uma grande empresa têxtil de São Paulo aproveitando a crise resolveu comprar todos os ativos das micro-empresas têxteis, principalmente as máquinas, fechando todas as fábricas instaladas na cidade. A maioria dos moradores de melhor situação financeira deixou a cidade utilizando o pequeno capital para investir em novos negócios, contribuindo para aumentar o desemprego na cidade. Empregados com carteira assinada eram raros, e a maioria voltou a disputar uma vaga nas mesmas condições de antigamente para o corte da cana-de-açúcar.