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quarta-feira, 3 de setembro de 2014

ENTRE O CÉU E A TERRA




Um grande amor não podia terminar assim... Vitória e Ulisses completavam trinta anos de casados. No início ele trabalhava como funcionário público e ela cozinheira de uma das mais antigas cantinas italianas do bairro. Apaixonaram-se. 
Não demorou muito, o sonho do casamento se realizou.  A vida era difícil.  Vitória sonhava em ter o seu próprio restaurante e criar um cardápio especial que pudesse agradar  todos  seus fregueses. Desde criança tinha um sonho que se repetia quase todas as noites,  atender seus fregueses em seus pedidos mais exóticos. O sonho lhe parecia tão real que chegava a sentir o aroma dos pratos que servia. Sentia-se feliz, pois em seus sonhos o cardápio era sempre diferente. 

Com o passar dos anos, o casal conquistou certa estabilidade financeira. Não tiveram filhos. Vitória estimulada pelo marido formou-se em psicologia, mesmo contra sua vontade, pois seu desejo era voltado para área de gastronomia. Depois de formada, Ulisses  a convenceu não a exercer sua profissão de psicóloga, já que tinha condições de sustentá-la com todo conforto, preferia que Vitória ficasse administrando o lar. Argumentava que  sua formação profissional  era apenas por prevenção, pois o futuro é sempre imprevisível. 
Vitória insistia na ideia de abrir o seu restaurante e Ulisses dizia que deixasse esta bobagem de lado. Não havia necessidade de acumular mais uma ocupação. Ela tentava argumentar que gostaria de trabalhar e administrar o restaurante não tomaria muito seu tempo, já que serviria apenas almoço, mas Ulisses mantinha-se irredutível em sua opinião, não gostaria que ela trabalhasse fora.

  A vida de Vitória começou a mudar com  a inesperada morte de  Ulisses, deixando-a muito triste e emocionalmente abalada, embora financeiramente ele a tenha deixado amparada, com uma boa pensão e um seguro de vida que a deixaria tranquila por muito tempo. 
Sentindo-se sozinha e infeliz, Vitória decidiu realizar seu grande sonho. Abriria um restaurante em sua cidade natal. 

Visitou seus parentes e lá encontrou um imóvel antigo com características de abandonado, semelhante ao que via em seus sonhos. Alugou-o e iniciou uma reforma. Deixou o ambiente aconchegante e requintado. Teve o cuidado de decorar o local com quadros de pratos apetitosos. Ornamentou as mesas com toalhas rendadas e arranjos floridos. No entanto o imóvel era muito mal visto pelos moradores da redondeza, diziam até que era mal-assombrado fato que contribuiu para que não conseguisse contratar nenhum funcionário.
Vitória, mesmo sozinha, preparou-se para a inauguração. Seu restaurante ficou do jeitinho que via em seus sonhos. Convidou os conhecidos, amigos e vizinhos e para sua surpresa ninguém compareceu. Os parentes alegaram compromissos e as outras pessoas arranjaram uma desculpa qualquer. Mas, ela era uma mulher obstinada, não permitiu que este fosse o motivo para desanimar. Especializou-se em pratos típicos e  diversificados para atrair a freguesia, mas foi em vão.  Durante alguns dias o restaurante ficou aberto com horário de almoço prolongado, mas ainda assim ninguém compareceu para degustar seus deliciosos pratos.  Vitória levava tudo para as casas de caridade da cidade. Cansada de escutar tantas desculpas e para evitar prejuízos ainda maiores decidiu inverter o horário de atendimento. Passou a servir apenas jantar. 

Na primeira noite, como era de se esperar, não houve movimento no restaurante.  Exausta e decepcionada, deitou-se mais cedo. Já era madrugada, não conseguia dormir, estava muito preocupada com o restaurante, quando ouviu um barulho de  música e um delicioso aroma invadir seu quarto. Levantou-se, abriu a porta dos fundos que dava acesso ao restaurante, e para sua surpresa viu o salão lotado. Todas as mesas estavam ocupadas e os fregueses a aguardavam para serem atendidos. Vitória estava incrédula. Observou que vários ajudantes estavam preparando os pratos para servir ás mesas. Apressou-se em ajudá-los rapidamente. Eram tantos pedidos que quase não deram conta, mas todos foram atendidos. 
Alguns curiosos do lado de fora do estabelecimento debochavam e riam da correria de Vitória, onde incansavelmente andava de um lado para o outro, levando pratos e recolhendo-os.
A partir daquele dia o restaurante nunca mais  foi o mesmo. 
Vitória percebeu que sua clientela era noturna. Todas as noites era um verdadeiro sucesso. Trabalhava durante o dia para preparar os pratos que serviria mais tarde. E quando todos chegavam ela corria de um lado para outro para servi-los. Do lado de fora, também aumentava o público que ficava observando o seu comportamento. Ninguém entendia  tanta correria para atender “ninguém”, pois o restaurante continuava vazio. Começaram a chamá-la de louca e esclerosada. Vitória sentia-se ofendida e convidava  todos para que entrassem e se misturassem as pessoas que estavam lá dentro e ainda afirmava que a cada dia o movimento crescia. Mas não era preciso entrar, pois das janelas do restaurante, podia se notar que o mesmo estava completamente vazio.

Os curiosos convenceram o médico da cidade que ela precisava ser internada, pois estava cada vez pior. O médico, especialista em psiquiatria, conversou com Vitória, que a todo momento, dizia não entender do que ele estava dizendo. Convidou-o a visitar seu restaurante e ver com seus próprios olhos o movimento de todas as noites. O médico, concordou. Iria naquela mesma noite. Ao chegar ao local encontrou dezenas de moradores em frente ao estabelecimento, observando Vitória, que andava de um lado para outro servindo as mesas vazias. Incomodou-se com o que estava presenciando dirigiu-se para a porta, e foi recebido pela anfitriã. Ao entrar, o médico deparou-se com o salão cheio. Todas as mesas estavam ocupadas. Avistou conhecidos e foi rodeado por muitas pessoas que não via há muito tempo. Antes que pudesse entender o que realmente estava acontecendo foi abordado por um antigo paciente.

- Doutor há quanto tempo? Eu estava esperando que o senhor viesse. Na verdade sabíamos que um dia o senhor viria. Lembra-se daquela paciente Dona Lenir, que por não ter condições de pagar todas as consultas, não teve do senhor um atendimento digno, e suicidou-se por  negligência médica? Pois é... Era minha esposa! 
O médico  ficou sem saber o que responder, foi abordado por outros conhecidos que ali estavam para cobrar satisfações por atos inconsequentes que ele cometera causando mortes, doenças crônicas, entre outras situações. Este tentava se desculpar, mas aquelas pessoas diziam que não havia perdão. Ordenaram que não fizesse nada que pudesse prejudicar dona Vitória, não poderia fechar o restaurante, eles não permitiriam que ela fosse internada, afinal não era louca. Ameaçaram que se fizesse algo que a magoasse, com certeza em breve estaria ali entre eles.  Assustado o médico prometeu deixá-la em paz.  Não voltou mais no restaurante e convenceu a todos quanto a sua saúde mental de Vitória, ela não precisava de internação.

O delegado ficou sabendo da visita do médico no local e não entendia por que ele  não tomou nenhuma providência. Estava irado, pois o tumulto que se formava todas as noites na frente do restaurante por curiosos, gerava reclamações e denúncias na delegacia, causando-lhe grandes transtornos. Decidiu então,  visitar o local. Colocaria um ponto final nesta história. Ao chegar ao recinto deparou-se com o tradicional tumulto do lado de fora, e observou que não havia ninguém, mas Vitória, como sempre, andava com pratos nas mãos de um lado para o outro como se a casa estivesse cheia. O delegado solicitou que todos fossem para suas casas. Após acabar com a desordem, entrou. Seus olhos não queriam acreditar no que via. Muitos dos que estavam sentados as mesas levantaram-se e caminharam em sua direção para cumprimentá-lo.

- Senhor delegado, que surpresa agradável. Que bom que o senhor veio... Temos algumas coisas para lhe falar. E o fizeram lembrar das situações de  abuso de autoridade, injustiças cometidas, conivência com contrabandistas, corrupção e principalmente das atrocidades com moradores que ousassem contrariá-lo, entre outros desmandos. Disseram que não permitiriam que ele fizesse nada contra Vitória, pois caso contrário, iriam buscá-lo. Deram-lhe um tempo para se redimir, caso não os atendessem passaria também a frequentar o restaurante todas as noites. O delegado assustado saiu sem dizer uma só palavra e resolveu não se envolver neste caso, deixando Vitória em paz.

O prefeito recebeu várias denúncias da omissão do delegado, que também havia visitado o restaurante e não tinha tomado nenhuma providência, resolveu assumir o caso e acabar com aquela anarquia. Na mesma noite, ao chegar ao local, fez questão de conversar com várias pessoas do lado de fora que relataram as loucuras da proprietária. Ele mesmo comprovou os fatos. Pedia calma a seus eleitores e se propôs a acabar com aquela deprimente situação. Ao entrar foi recebido pelos fregueses assíduos do restaurante, encontrou vários políticos que cobraram a falta de ética da sua administração, e os conchavos que derrubaram vários deles, o fizeram lembrar das falcatruas que se envolveu para se perpetuar no poder. Foi cobrado por promessas nunca cumpridas, desvios de verbas dos mais pobres e de enriquecimento com dinheiro público. O prefeito desesperado, via-se entre a cruz e a espada, comprometeu-se a se redimir e reverter toda as acusações.

Jurou que mudaria sua maneira de governar, envolver-se-ia em causas sociais. Prometeu incentivar o público a frequentar o restaurante. Com medo de que pudesse tornar-se mais um dos fregueses, passou a promover o restaurante de dona Vitória.
A partir de então, o restaurante passou a ser muito frequentado. Durante o dia Vitória servia almoço a preço simbólico, com apoio da prefeitura para todos moradores da cidade e a noite o restaurante era frequentado pelos fantasmas da madrugada, que estavam ali somente para exigir justiça de todos aqueles que deviam alguma coisa e que por algum motivo se aventurassem a entrar para jantar.

AMANHECER




Jovem escritor, romancista, ávido por novas descobertas, entediado por manter uma escrita puramente comercial, na década de 70, resolvi sair e viajar pelo Brasil. Semanas,  meses  e até anos num projeto ambicioso, em busca de  novas inspirações.  Sozinho e acompanhado, aqui e ali, de norte a sul do país, desvendando mistérios, lendas, contos, folclores, fatos reais, que se transformaram em  livros com histórias que enalteciam a  cultura de cada região.  Cidades maravilhosas, lugarejos aconchegantes, povo receptivo, histórias fascinantes contadas por eles enriquecendo meu acervo.
Todas as noites, pegava meu caderno registrava com detalhes as informações obtidas  nas praças, nos bares, nas pousadas. Interessante que cada um tinha um ponto de vista diferente sobre mesma história. Quantos amores, coronéis, assassinatos, brigas, adultérios, traição, milagres, acompanhavam  o rico momento de cada cidade  provinciana. Para que eu tivesse liberdade de ir e vir, decidi não me envolver emocionalmente, apesar de ter sido assediado  por belas jovens, dignas de meu amor e carinho, porém o objetivo  era registrar o maior número de fatos que marcassem cada lugar. Um envolvimento amoroso teria consequências devastadoras em minha trajetória em divulgar o que cada cidade tinha para contar.
Com meu trailer viajei todos os cantos do país. Pegava estrada sem destino. Um dia após viajar dez horas sem parar, cheguei  a Vila Velha no Espírito Santo, cidade exuberante e encantadora, belezas  naturais  brotam da terra, como as flores nos jardins, o movimento de cidade grande, porém mantendo o carinho e a cumplicidade do povo interiorano, quantas histórias teria ali para registrar. Apesar de cansado, andei mais alguns quilômetros a procura de um lugar que pudesse montar meu acampamento.
Impulsionado pela beleza de uma trilha adentrei-me na mata. Estacionei meu carro á beira de um grande lago, onde da outra margem pequenas montanhas se destacavam como uma linda obra da natureza, dando aquele lugar uma beleza incomparável. Inspirações repentinas tomaram conta de meu ser, uma pequena fogueira aquecia meus pés, com uma caneta nas mãos viajei com minha imaginação por lugares maravilhosos até adormecer.
Ao amanhecer fui surpreendido com o sol  e sua exuberante altivez  coloriu o céu de um alaranjado, dando as montanhas que cercavam o lago uma sobriedade matinal transmitindo um acalentador desejo de viver. Não satisfeito em me emocionar, a natureza espelhava o reflexo da luz do sol em suas águas e ao centro um pequeno barquinho a vela deslizava tranquilamente. Eu já havia despertado, embora acreditasse que estava ainda sonhando, pois  a imagem que tinha diante de meus olhos  parecia uma obra de arte que a natureza me presenteava. Enquanto admirava o cenário algo me chamou a atenção. Daquele barquinho saltou um corpo escultural e mergulhou nas águas cristalinas, criando ondas suaves, onde a cada braçada aproximava-se da margem uma bela jovem, que ergueu seus belos olhos negros, cabelos lisos e molhados e de pele  bronzeada vindo em minha direção.
Atônito, permaneci em silêncio. Seduzido a tanta beleza, observei-a sentando-se ao meu lado e pedindo-me uma tolha, enquanto enxugava seus cabelos fez inúmeras perguntas a meu respeito, convidou-me a nadar puxando-me pelas mãos. Enfeitiçado,  não ousei contrariá-la. Mergulhamos juntos, brincamos com os peixes, nadamos como se nos conhecêssemos a tempos. O reflexo do sol iluminava o lago, colorindo a vegetação que num bailado incessante dava a correnteza a certeza  que fazíamos parte daquela paisagem sedutora, onde jovens namorados faziam amor embriagados pela ternura e emoção. O cenário nos envolveu com uma paixão fulminante.
Nadamos até o barquinho, entre beijos e carinhos serviu-me iguarias. O amor exalava por nossos poros, vivemos horas de verdadeira paixão. Senti que havia provado o néctar dos deuses.
Precisava voltar ao trailer para buscar meus pertences. Ela pedia para que eu não fosse, que eu ficasse ao seu lado. Sorri demonstrando minha satisfação e meu interesse em retornar, e jurando amor eterno mergulhei em direção a margem onde voltaria imediatamente a fim de ficar ao seu lado pelo resto de minha vida.
Entre um mergulho e outro, eu gritava para que ficasse tranquila, pois voltaria o mais rápido possível. Ao avistar o trailer nadei ainda mais rápido. Aprecei-me em pegar algumas roupas, meu bloco de anotações para registrar tudo que estava acontecendo. Ao deixar o trailer fui surpreendido ao notar que o barquinho havia sumido. Mergulhei, nadei por horas, e nada de encontrar a mulher que pela primeira vez em minha vida mexeu com meus sentimentos, nem seu nome eu sabia, apenas  sentia que era a mulher de minha vida. Retornei as margens, o sol parecia estar parado como se só existisse o amanhecer, mantendo a beleza das montanhas  e o reflexo nas águas.  Procurei a pela morena e os olhos negros que me fascinaram,  todavia  somente o barquinho deixara de emoldurar a beleza da paisagem que destroçou meu coração de tanto amor. Por dias permaneci no acampamento, esperei exaustivamente o seu retorno, procurei as autoridades do lugar que me ajudaram na busca, mas sem nenhum sucesso. Aluguei um quarto no hotel, o mais antigo do lugar, para conhecer melhor a cidade e continuar minha busca em todos os lugares. Quando sai para jantar,  notei que no salão principal sobre a lareira  havia  uma escultura de bronze.
A escultura era de uma mulher, corpo escultural, com os cabelos lisos como se  molhados. Tive certeza, era a jovem do lago, a minha musa. Busquei informações sobre aquela escultura. Contaram-me uma triste história. “Um homem abandonado pela esposa, temendo que sua filha também o deixasse,  trancou-a num casebre á beira do lago. Dizem que certo dia, ao amanhecer, tendo o somente o sol como testemunha, a jovem desejosa de mudar o destino de sua vida,  conseguiu escapar do casebre,  avistou um barquinho no lago e tentou mergulhar até ele, sem saber nadar, debateu-se desesperadamente nas águas,  afogou-se e seu corpo nunca fora encontrado.
Dizem que toda manhã o sol brinda os turistas com um raio que os leva aos seus braços, e ela busca na eternidade um amor que a faça realmente feliz”.
Continuei a viajar pelo Brasil, escrevendo  e anotando minhas inspirações, mas  sempre que posso volto  ás margens do lago em Vila Velha, na esperança de um dia poder ser por ela escolhido para viver na eternidade, como o dito popular do local, descreve com tanta ternura.  


   

terça-feira, 2 de setembro de 2014

MALDITO SEDUTOR



Após uma gravidez bem sucedida, nasceu Alberto, forte e saudável. Logo se tornou um bebê lindo, gordinho, olhos azuis, cabelinhos cacheados, pela clara e rosada, muito sorridente. Sua mãe providenciou um book e apresentou em várias agências de propaganda. Alberto foi contratado para ser explorado pela mídia. Pouco tempo depois fazia propagandas de produtos infantis,
brinquedos, alimentos, e marcas de roupas. Na juventude sua beleza foi explorada com produtos que atraíssem os jovens e adolescentes, como perfumes, e grifes. Era realmente um belo rapaz, e tornou-se um dos maiores garotos propaganda da televisão e revistas brasileiras. Aos 26 anos de idade, era requisitado para programas de tv.
 Para manter-se sempre em destaque, trocava a noite pelo dia e cumpria com as exigências de sua profissão. Quando completou 30 anos, as coisas começaram a mudar. Apesar de ainda ser muito bonito e desejado, outros jovens começaram a se destacar de forma que seu trabalho não mais supria suas necessidades. Precisava de muito dinheiro para manter o padrão de vida de até então, além de precisar manter sua aparência. Através de convite de alguns amigos, tornou-se homem de programa. Atendia a senhoras da alta sociedade, envolvia-se com todo tipo de mulher, principalmente as de terceira idade, que passaram a sustentá-lo. Alberto envolto nesta situação passou a entregar-se a vícios, como o fumo, bebidas, e inclusive as drogas. Chegou a ser preso, por alguns anos, nos quais foi aprendiz de todas as malandragens e falcatruas. Ao sair da prisão conduziu uma equipe para explorar mulheres ricas e carentes.
 Planejavam com detalhes como envolvê-las, descobrindo seus pontos mais fracos. Cheio de técnicas e malícias seduzia as vítimas, que se apaixonavam loucamente por ele, ficando a mercê de seus caprichos. Era um verdadeiro exper no assunto “sexo”, pois aprendera de tudo quando fazia programas. Alberto, com 45 anos continuava charmoso, bonito, sempre elegante, cabelos fartos e grisalhos, totalmente sensual. Trajava-se a rigor, sempre com ternos bem cortados e vistosos. Seu perfume exalava uma fragrância no ar que atraía a atenção até das pessoas mais desligadas. Era um verdadeiro gentleman.
Certa ocasião entrou numa agência bancária, e observou uma gerente aparentemente triste, porém notou que esforçava-se para atender a todos com simpatia. Alberto numa fração de segundos arquitetou um plano. Aproximou-se da gerente com o argumento de que gostaria de abrir uma conta corrente. Kátia procurou atendê-lo da melhor maneira possível. Nos dias seguintes Alberto mandou-lhe flores e a convidou para sair. Kátia estava separada de seu marido há pouco tempo e com um filho pequeno. Sentia-se deprimida. Aceitou ao convite e saíram para jantar. Como já era de se esperar, Alberto proporcionou-lhe um jantar envolvente á luz de velas e com demais galanteios.
Propositalmente fez com que falasse de si, do que gostava e do que a afligia, além de seu lazer e seu trabalho. Kátia era responsável pela carteira de pessoa jurídica da agência e necessitava cumprir metas, preocupava-se, pois se não as cumprisse poderia ser transferida para um local longe de sua casa, dificultando ainda mais sua vida. Alberto que se apresentava como consultor de empresas, se propôs em ajudá-la, uma vez que conhecia muitos empresários.
Kátia acreditando que ele a ajudaria passou a lhe dar as informações necessárias para a aprovação de um cadastro. Alberto e sua equipe apresentaram-lhe cinco cadastros de empresas multinacionais necessitando de crédito dentro dos parâmetros exigidos pelo banco. O gerente geral da agência fez visitas a todas elas. Alberto subornava funcionários dessas empresas, para receberem gerentes e administradores, como se fossem os diretores das mesmas. Após as visitas bem sucedidas, foi aprovado o crédito, concedido pelo gerente e pela diretoria, que para este caso implantou um limite de cinco milhões.
O plano estava dando certo. Alberto numa atitude providencial convidou Kátia para um passeio em seu iate, deixando-a ainda mais apaixonada. Com o rápido envolvimento, ele pedia que apreçasse a liberação do dinheiro para seus clientes. Kátia comentava sobre as burocracias, mas prometeu que faria o possível para agilizar a liberação. Naquela semana, a funcionária do cadastro necessitando de maiores informações, entrou em contato com as empresas e notou que a secretária de todas elas, apesar de se identificar com nomes diferentes, tinha o mesmo sotaque, parecia-lhe ser a mesma pessoa. Atenta decidiu, ligar novamente, e trocou os nomes das secretárias das empresas a fim de confirmar suas suspeitas de um possível golpe.
O caso foi levado á gerencia que confirmou a suspeita, deixando Kátia desesperada. Para seu desconsolo, Alberto ao ser desmascarado em lugar público confessou que apenas a ludibriou por interesse, assim como fizera com outras gerentes de banco. Na verdade ela fora apenas mais uma. Kátia inconformada pensou em acionar a polícia, mas foi impedida pela paixão que ainda a acometia.

Alberto despediu-se dizendo que tudo fazia parte do jogo, e sumiu em meio à multidão. Para Kátia, somente deixou a certeza de que sairia á procura outras vítimas.

MARCAS DO TEMPO




Com o crescimento desordenado e a exigência de novos espaços para atender um público especializado, e as novas tecnologias que vem determinando os novos rumos da cidade, a prefeitura de São Paulo autorizou, após várias demandas judiciais, a demolição de um famoso cartão postal da cidade, o velho casarão abandonado na avenida Ipiranga, para construir um edifício com alta tecnologia ambiental. A falta de conservação do imóvel e o eminente desabamento pelo precário estado das estruturas, ofereciam riscos á população. Foi determinada uma minuciosa vistoria no prédio. Para surpresa de todos foi descoberto no porão, um atelier com centenas de obras de arte, que estavam embalados, demonstrando que havia interesse de protegê-las quanto a ação do tempo.

Especialistas foram convocados para realizar um levantamento das obras armazenadas e ficaram deslumbrados com a qualidade de cada peça, entre elas cinco esculturas em pedra sabão chamou a atenção dos responsáveis pela inspeção, onde o requinte nos detalhes transmitiam o milagre da vida através de delicados traços. 
Não foi difícil imaginar, que a criação de cada escultura demonstrava uma linda história de amor , onde as roupas esculpidas moldavam a silhueta feminina. Notou-se que um conjunto de esculturas era de uma mulher que perfilada retratava os momentos especiais de sua vida, em destaque seu nome Melissa e a data estavam gravados.

As esculturas a homenageava em 1920 vestida em um magnânimo e belíssimo vestido noiva, outra datada de 1922 onde estava grávida, esculpida detalhava a ternura de seu criador onde desvendava o segredo da vida. Já em 1927 acompanhada de uma criança, segurava a mão de uma menina. E as esculturas de 1931 e 1935, onde o artista abusou de sua sensibilidade trazendo á tona a experiência e a maturidade de uma mulher.
Encontraram documentos que mencionavam o nome do artista, Paulo Rangel Freitas, hoje considerado um dos maiores artistas brasileiros nesta arte. As obras foram cuidadosamente retiradas do local. O fato obteve repercussão junto aos meios de comunicação exigindo melhor investigação a fim de desvendar o segredo que o artista conseguiu ocultar.

Uma das maiores revistas com a parceria da prefeitura promoveram numa badaladíssima casa de espetáculo uma festa em homenagem aos 90 anos do escultor, falecido recentemente. Entregariam as maravilhosas obras encontradas, á sua esposa, Vivian, que no tão esperado dia do evento, cercada por filhos e netos, observava a cerimônia, e aguardava o momento de receber as esculturas. Enquanto o show Desenrolava com muita música, entrevistas e slides, contando a vida de nosso grande artista, sentada numa poltrona no anfiteatro, Vivian, de posse de um velho diário do artista, lia com emoção para ajudar a passar o tempo e controlar sua ansiedade; deixava a imaginação viajar por sua história. Através deste diário, tantas vezes lido, que Vivian confirmou o que sempre soube sobre os verdadeiros sentimentos de Paulo.

“Melissa, jovem, eleita por várias vezes a mais bela estudante do colégio, de família rica, estudava num dos melhores colégio de são Paulo situado na praça da República. Para manter o poder patriarcal , aos 13 anos fora prometida pelo pai
ao filho de uma família nobre, um dos barões do café da época, que residia num imponente casarão na Avenida Paulista. 
Paulo Rangel, um belíssimo rapaz sorridente cativava a todos que o cercavam. Era muito assediado pelas jovens. Físico atlético, alto, cabelos lisos jogados sobre a testa, tinha um ar misterioso, principalmente quando serrava os olhos inclinando a cabeça sobre os ombros e fixava seu olhar sobre as pessoas, e um leve sorriso maroto na canto da boca. Esta característica deu-lhe notoriedade, principalmente entre as moças, que o achavam muito charmoso. Paulo era filho de um dos primeiros taxistas de São Paulo, moravam num decadente casarão que havia se tornado num dos cortiços da avenida Ipiranga, por volta de 1918. Aos dezessete anos trabalhava durante o dia no táxi para ajudar no orçamento familiar.

Prestava serviços de carro de aluguel para noivas aos finais de semana. Desde pequeno já era reconhecido por estar sempre envolvido com trabalhos manuais, Qualquer objeto era motivação para esculpir, e com o tempo suas esculturas foram sendo consideradas obras de arte. Estudava num colégio no bairro do Brás, onde participava de todas as atividades principalmente as esportivas. Morava próximo da Praça da República de onde assistia aos desfiles de 7 de Setembro com apresentação da fanfarra do colégio que trazia a sua frente a mais bela passista, não podia ser outra... Melissa, que era alvo de olhares por sua desenvoltura e graça. Sua atuação despertou em Paulo a magia do amor. Encantado com a formosa jovem sabia ter encontrado o grande amor de sua vida.

Passou a improvisar diversas situações somente para vê-la. Cruzava a sua frente, chegou a esbarrá-la e se desculpar depois. Melissa envolvida em seu mundo não percebia os olhares apaixonado de Paulo, nem tão pouco suas intenções. A belíssima jovem diariamente dirigia-se a escola acompanhada de amigas. Tinha que se desvencilhar de olhares admirados. Paulo a observava de perto e a distancia e nas horas vagas, motivado por seu amor secreto esculpia verdadeiras obras de arte. 
Durante muitos anos nutriu em seu coração este amor impossível. Isto lhe dava esperança de vencer na vida, continuou estudando e trabalhando com seu pai. Aproveitava as horas vagas para participar de cursos oferecidos pelo Museu de Arte Moderna para aperfeiçoar sua técnica que até então era visto como uma brincadeira. Paulo transformava a pedra bruta em verdadeiras obras de arte. 

Mas quis o destino pregar-lhe uma peça. No último sábado do outono de 1920, foi contratado para levar uma noiva de sua residência até a igreja. Com pagamento a vista a contratante exigiu certo requinte. Na época chegar de táxi tinha o glamour só visto nos filmes de Hollywood. 
Determinado em apresentar um excelente trabalho, ornamentou o carro com flores e fitas de cetim, trajou-se elegantemente, dirigiu-se para o endereço combinado. Exigente, Paulo só se preocupava em atender ao cliente da melhor maneira possível. Ao chegar no local indicado, ficou desesperado, somente neste momento observou que sua ansiedade o havia traído. Pois em nenhum momento observou que o endereço já conhecia. 

Aproximou-se do casarão, na Avenida Paulista. Um corredor iluminado formou-se em uma passarela até a porta principal. Anunciou-se e surge á sua frente com andar elegante e suave Melissa que vinha em sua direção. Desceu do carro como manda o cerimonial. Abriu a porta deixando-a entrar. Mantinha a esperança que estivesse vivendo um sonho. Discretamente fixou seu olhar naquele rosto angelical ainda mais bonito de véu e grinalda e neste momento permitiu que sua emoção aflorasse. Durante o trajeto disfarçava para que ela não percebesse suas lágrimas, que teimavam em rolar pelo seu rosto.
Ao chegar a porta da igreja os flash’s das câmeras fotográficas iluminavam o automóvel. Paulo teve a oportunidade de ser fotografado ao seu lado, ajudando-a a sair do carro. Conduziu-a até a porta da igreja, entregando-a a seu pai que a aguardava. Caminhou desoladamente para um canto e observou Melissa caminhar pelo corredor da igreja, sorridente e subir ao altar.
Para sua frustração notou que o casal formava um par perfeito. A partir deste momento o sorridente e cativante Paulo passou a ser um homem silencioso, cauteloso e pensativo, trazendo consigo o segredo de seu grande amor.

O tempo serviu para refletir sobre sua vida decidindo aperfeiçoar sua arte. Continuou trabalhando de taxista nas horas vagas. Nenhuma outra mulher conseguiu conquistar seu coração. Nesta época o trânsito começava a ficar intenso em São Paulo. Sempre que era contratado e passava pela Avenida Paulista, emocionava-se ao recordar a tarde de sábado. Foi presenteado ao ver Melissa caminhando alegremente pela avenida, notou que estava grávida.
O destino como sempre imprevisível, testou o seu amor colocando-o frente a frente novamente.
Numa noite fria de inverno, atendeu a um chamado para socorrer uma mulher que iria dar a luz, já não era mais uma surpresa, quando anotou o endereço, sabia que era Melissa. Ela parecia indefesa, suplicando por ajuda, pois seu marido havia viajado a trabalho. Paulo sem hesitar apressou-se em atendê-la, e levou-a à maternidade. 

Nesta noite o céus se coloriu de tanta alegria nasceu a graciosa Vivian, nome escolhido pelo pai. Após se recuperar do parto, Melissa sentindo a necessidade de contratar um motorista particular ofereceu a Paulo um excelente salário, além de algumas horas livres para que pudesse continuar seus estudos na escola de arte de São Paulo. A contratação de Paulo teve como principal motivo a gratidão. Paulo não titubeou em aceitar, não podia perder a oportunidade de estar diariamente participando do convívio com Melissa. Dedicadamente passou a servir a família como motorista particular. Com o crescimento de Vivian, aumentou sua responsabilidade pois passou a levá-la diariamente ao colégio, além de festas e passeios. Sempre que Melissa estava por perto ele a olhava e a tratava com carinho. Vivian começou a sentir-se perturbada, e enciumada. Na adolescência descobriu que o amava, mesmo tendo idade para ser seu pai. Apaixonou-se loucamente, Paulo tornou-se seu grande amor. Chorou tantas vezes por ele, ao sentir que amava sua mãe, e não conseguia controlar seu ciúme.

No seu íntimo queria acreditar que se tratava apenas de educação e respeito pela patroa, mas sabia que ocultava um segredo. Muitas vezes antes de se deitar Vivian ia até a janela e o observava limpando o automóvel para o dia seguinte e por diversas vezes o flagrou olhando fixamente sua silhueta marcada através das cortinas em seu quarto. Paulo a admirava, e sorria um sorriso leve como quem se contentava com sua sorte de poder estar por perto de Melissa. Este era um dos motivos que aumentava a admiração de Viviam por Paulo, pois mantinha sua integridade amando-a em silêncio. Jamais ousou expor seus sentimentos, era feliz em vê-la feliz, pois vivia um casamento de amor e harmonia.

Paulo completava 39 anos e não havia se casado. Dedicou-se ao trabalho e as suas artes. Vivian sempre acompanhou os trabalhos artesanais de Paulo. Desde cedo descobriu seu amor por ele e sonhava em tê-lo, mesmo sabendo do seu amor por sua mãe, embora Melissa nunca percebera os verdadeiros sentimentos de Paulo, e sempre sendo fiel ao seu casamento.
Paulo fazia todas as vontades de Viviam, levava-a para todos os lados, acompanhava-a em festas, na escola, em passeios e Vivian não perdia a oportunidade de tentar despertar ciúmes em Paulo, apresentando-o pretendentes, pois havia se tornado numa belíssima mulher. Assediada por rapazes simpáticos e galantes. Mas Paulo não se deixava levar pelos seus arroubos de juventude. 
O sonho de Vivian era estar sempre ao lado de Paulo e gostaria de vê-lo reconhecido como escultor. Em uma festa promovida por seus pais em sua residência Viviam conheceu um construtor americano que precisava de obras de arte para ornamentar um edifício que estava sendo construído em Nova York. Entendendo que era uma excelente oportunidade para divulgar as esculturas de Paulo, Vivian o convenceu a apresentar seus trabalhos. Admirado com a qualidade e requinte das peças aprovou imediatamente e encomendou dezenas de peças de altíssima complexidade. Paulo não esperava tal convite, mas não se impressionou com o desafio. Vivian estava ao seu lado apoiando a sua decisão. Comprometeu-se a entregá-las no prazo combinado. Apoiado pelos patrões que contrataram outro motorista para que Paulo pudesse trabalhar as encomendas. Vivian passou a ser sua assistente e cuidava da parte burocrática, como contratos, estoques, materiais, registros, direitos autorais, um trabalho árduo. 

Paulo sentia-se realizado. Sua barba por fazer, cabelos mais longos caracterizavam o brilhante escultor. As pedras brutas iam se transformando e uma a uma quando prontas apresentavam sua singularidade. Logo que as encomendas ficaram prontas, Vivian providenciou que fossem apresentadas na embaixada dos Estados Unidos. Entusiasmado com as peças o embaixador exigiu que fosse realizado uma grande exposição para que toda a sociedade paulistana pudesse apreciar tamanha preciosidade. Paulo através do repentino sucesso teve seu reconhecimento internacional. Elogiado pelos principais críticos do mundo que o reconheciam como um dos melhores em sua arte. A partir daí encomendas chegavam de vários países.

Vivian assumiu a coordenação dos trabalhos e era responsável pela divulgação de suas obras. Paulo reconhecia o empenho de Vivian e sua dedicação. Aos poucos se deixou levar pelos seus carinhos de Vivian e conseqüentemente o envolvimento fora inevitável. A diferença de 20 anos não foi empecilho para selar este enlace. Vivian sabia que Paulo não a amava porém sabia que tinha por ela grande apreço e carinho. Paulo a respeitava, fazia de tudo para agradá-la, e Vivian nutria a esperança de que um dia o faria esquecer o amor por sua mãe.
Melissa e o pai de Vivian não aprovaram o romance, argumentando que a diferença de idade nos separaria e nos traria problemas no futuro, fê-lo lembrar que a segurou no colo, a viu crescer. Mas Vivian não permitiria que nada ou ninguém a impedisse de viver seu grande amor. Como era de se esperar seus pais e parentes não compareceram no casamento. Apesar de tudo Paulo estava feliz. Vivian estava maravilhada. Continuou tomando frente de seus compromissos e encomendas.
Tiveram três filhos. Paulo trabalhava e era cada vez mais requisitado. Viajaram pelo mundo, ele esculpindo e Vivian administrando sua vida e seu coração na qual sentia-se extasiada em poder compartilhar todos os momentos com o homem que tanto amava. 

Paulo era excelente pai e um ótimo esposo. Suas obras eram reconhecidas no mundo todo. Em 1970 o pai de Vivian faleceu deixando Melissa aos 68 anos sozinha. Mesmo sabendo do amor oculto que Paulo nutria por ela Vivian convidou-a para morar em sua. Acreditava na dignidade de Paulo, e conviveram juntos por alguns anos. A hora de Melissa chegou. Paulo sofria calado, por diversas vezes chorava enquanto esculpia, descrevia em seu diário todo sentimento de amor e carinho que sentia por Melissa, e da certeza que tinha que ela era feliz em seu casamento. 
Agradecia a Vivian repetidas vezes sua dedicação, seu amor, sua compreensão. Pouco tempo da morte de Melissa passou e Paulo já muito doente também partiu.
Quis o destino que a deixasse, mas sabia que Vivian faria sua obra ser eterna para aplaudir a sua arte agora vive as lembranças e os momentos que não voltam mais. 

Hoje nesta data comemorativa Vivian está feliz, porque amou seus pais, ama sua vida, mas declara nada se compara o amor que sentiu por Paulo.

Em poucas palavras Vivian falou para o público que aguardava a apresentação e entrega das esculturas:
- Tenho certeza que estas esculturas que hoje receberei são marcas de um tempo e que não foram feitas para mim, mas foram feitas pelas mãos de Paulo em homenagem a minha querida mãe, Mas irei guardá-las com o mesmo carinho como se tivessem sido feitas para mim. Paulo foi a luz de minha vida, estou presa pela saudade, mas estou feliz, porque espero encontrá-lo no final do caminho. E então ficaremos juntos, continuarei administrando e ele esculpindo na eternidade.


segunda-feira, 1 de setembro de 2014

ESTRADA DA VIDA





" Era tarde, muito tarde. Estava cansado. Havia dirigido o dia todo. Precisava entregar a carga até a manhã seguinte. O “Bruto” replicava como se entendesse que precisava me ajudar. Eu trocava as marchas e ele respondia com potência. Somente a estrada não colaborava...buracos, lombadas, acostamentos precários. A sinalização era deficiente, isso quando havia. Poucos caminhoneiros se aventuravam por aquelas rodovias do país. Às vezes tinha a impressão que estava sozinho no mundo. Logo á frente percebi que as coisas iriam piorar. Um aviso improvisado alertava sobre um desvio por uma estrada secundária, pois havia desmoronamento na via principal. Era só o que faltava !...Mais adiante avistei uma placa azul com letras douradas sinalizando acesso a uma pista dupla. Tinha asfalto negro com faixas amarelas que indicavam cada trecho da estrada. Eu não acreditava no que estava vendo. O “Bruto” deslizava como se estivesse sobre um tapete. Não havia ondulações nem lombadas.
 A cada quilômetro deparava-me com um telefone. Uma frota de caminhões lotara a estrada, porém todos seguiam  organizados. As pistas largas fluíam às suas margens, gramados verdes e arbustos floridos desenhavam a paisagem deixando a estrada ainda mais linda. As placas azuis com letras douradas eram intercaladas com placas verdes e letras brancas, vermelhas com letras amarelas, brancas com letras pretas. Nunca havia visto nada parecido. Sem dúvida era uma experiência nova. Comecei a observar os caminhoneiros que por mim passavam, eles nem olhavam para o lado, sempre muito sérios.
Uma placa luminosa, com aparência estranha informava que havia um posto de serviços  a alguns quilômetros á frente. Até que enfim... Eu já precisava parar mesmo. Quando lá cheguei, não havia mais vagas no estacionamento. Tentei manobrar mas era impossível. Tentei parar no acostamento, um guarda estranho com roupas antigas, soou um apito avisando para que eu continuasse, pois ali não era o meu lugar. Percebi que os caminhões que ali estavam estacionados eram antigos, alguns da década de 30 e 40, mas todos em excelente estado de conservação, pareciam  ter  saído da fábrica naqueles dias.
Os trajes dos motoristas também eram diferentes e todos usavam chapéus. Muitos deles se reuniram no estacionamento e ficaram me observando, alguns tiraram o chapéu e até tentaram acenar, mas na velocidade em que eu estava, não permitiu-me retribuir. Para minha alegria uma nova placa de cor clara com letras marrom sinalizava que logo á frente havia um novo posto de serviços. Não fiquei muito esperançoso, pois a mesma avisava que o local era somente para  atender automóveis de passeio.
Quando lá cheguei deparei com uma verdadeira exposição de carros antigos. Todos tentavam estacionar. Os guardas apitavam gesticulando que eu acelerasse o “Bruto”, para que não piorasse ainda mais o trânsito. E novamente deixei mais um posto de serviços para trás.
Durante horas dirigi sem poder estacionar. Tive a oportunidade de ver centenas de modelos de caminhões e automóveis dos últimos cinqüenta anos, que circulavam naquela estrada. O tráfego era tão organizado que havia posto de serviços para cada um deles. Notei que à medida que eu percorria quilômetros os veículos iam mudando, surgindo mais novos, até que chegarem aos modelos atuais.
À distância uma placa iluminada sinalizava “Posto de Serviços para Caminhões ano 2003”. O estacionamento estava lotado, porém uma vaga me esperava. Dezenas de caminhoneiros vieram me receber, pareciam ser todos meus amigos. Abraçaram-me, os acompanhei até o interior do Posto. Contei-lhes que naquela estrada havia presenciado uma verdadeira tela cinematográfica, vendo todos os tipos de automóveis e caminhões antigos que já saíram de circulação há muito tempo. Então retornamos até a beira da estrada, paramos para  observar os caminhões e carros de passeio que por ali passavam. Disseram-me que eu estava assistindo o milagre da vida. Observe aquele caminhão, dizia um deles, é  modelo 2004. Veja aquele outro, 2005, o outro é novíssimo 2006.
À medida que iam passando surgiam automóveis inovadores, modernos, 2010, 2011, 2025,...Daqui você poderá observar a evolução da tecnologia, dizia um outro. 
- Mas será que nossos governantes  pensaram nos homens que irão conduzir estás máquinas?
Ele trabalhará dia e noite, viajará por estradas ruins, mal sinalizadas, esburacadas e sem acostamentos. Provocará muitos acidentes, principalmente pelo desenvolvimento constante de motores tão potentes, que exigem dos motoristas maior conhecimento e muito treinamento, o que nem sempre é exigido pelas leis que não acompanham a velocidade da tecnologia e que serão os responsáveis por todos os outros pais de famílias que por aqui  passarão, e que não saberão que  a sua vaga para estacionar estará logo á sua frente. 

ÁGUA FONTE DA VIDA




Admirável mundo novo. Como obra do destino, fiz parte da criação. Sou indispensável na fecundação da terra, na germinação das sementes, no desenvolvimento das matas e na formação dos oceanos. Sou parte integrante da vida. Tenho consciência da minha cota de responsabilidade no desenvolvimento dos povos que dominaram o mundo utilizando-se da força e da guerra. Eu ainda estava presente no suor dos vencedores e rolei nas faces dos vencidos.
Extraordinário é a capacidade de complementar a natureza e fazer a vida, a morte, o sorriso e a tristeza, e, ao mesmo tempo ser sublime ao aliviar a dor de quem sofre. Sou predestinada e tenho a pretensão da eternidade. Auxilio a natureza que consegue, com a sua imensa sabedoria, utilizar-se de meu incomensurável poder de transformação, num momento líquido, e logo após sólido, gelado, quente, vaporoso, que unido ao vento, realiza um espetáculo da  natureza, que com leveza nos eleva as alturas para nos juntarmos umas as outras, como se fôssemos uma grande família. E aproveitando esta confraternização nos compactamos por alguns momentos e conseguimos evitar que os raios solares nos penetrem; criamos sombras  sobre a terra, dando o tempo necessário para que ela consiga germinar e mover todo o ecossistema e ficar novamente a mercê  da ostentação do astro rei.
Permanecemos ao sabor do vento, conduzindo-nos com os braços abertos, levando-nos a acreditar que poderíamos nos unir, e juntos viajarmos, porém nos leva as alturas e nós em nossa infinita inocência criamos uma barreira e afrontamos novamente aquele que com seu poder dispara seus raios, nos aquecendo e nos obrigando a cumprir o nosso destino.
Solidificamos novamente, e, como num passe de mágica, alegremente nos desfazemos, despencamos ao chão, criando pequenas fendas, que rapidamente são ocupadas por seres vivos germinando e gerando vida. Adubamos a terra, viajamos na semente. Chegamos aqui antes Cabral e fomos escolhidos pela natureza para refrescá-lo enquanto gritava “ Terra à vista”.
Tivemos a oportunidade de ver o continente úmido se tornar uma selva de pedra, mas ainda tão dependente de nós.
Deslumbrante é a leveza de acariciar um corpo de mulher, deslizar por suas curvas, afagando-lhe a pele como se convidando para amá-la. E linda é a lágrima de uma criança, a qual Deus deu a percepção de nos ouvir, de falar, responder, de brincar e nos beijar.
Retribuímos ao alimentar os povos.
Surpreendentes são os nossos compromissos. Deslizar pelos rios, e nos transformar em cascatas, num passeio que leva milhares de anos para retomar nossa origem. Viajando podemos admirar as florestas, os campos, as cidades, os rios, as cachoeiras. Acredito que um dia poderemos morrer, mas, enquanto houver homens preocupados em preservar o meio ambiente promovendo a recuperação da natureza, respeitando as nascentes, não poluindo os  rios ,protegendo os mares, teremos certeza que sempre estaremos aqui cumprindo a nossa missão.













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A CHAMINÉ




Noventa anos completava senhor Vito. Todos da família o prestigiava nesta data especial. Filhos e netos comemoravam a saúde, a disposição e mais um aniversário do querido avô, que pelo seu carisma e companheirismo conseguia manter a chama da união familiar sempre acesa. Preocupados em agradar e corresponder a tanta dedicação, todos os anos compravam diversos presentes, sempre acompanhados de uma bela macarronada regada  a vinho e muita música. Mas apesar de tantas comemorações era evidente que ele não era um homem completamente  feliz. Os netos indagavam se havia alguma coisa em especial que ele gostaria de ganhar. Sr. Vito levantou-se com certa dificuldade caminhou até a janela, apoiou as mãos no batente, e girando a cabeça lentamente  olhando para os netos, filhos e noras, respondeu:

- Sim, meu grande desejo é visitar a fábrica que trabalhei por mais de cinquenta anos. Este é meu último desejo,  e gostaria que vocês me levassem até lá. 

Surpresos, entreolharam-se. Preocupados em não contrariá-lo, tentaram argumentar, sabiam que não podiam realizar este pedido, pois desde que o avô perdeu sua querida Júlia, há mais de 20 anos, ficou desolado, e sua idade avançada não permitiria tal realização. Mas desde que ficou viúvo, Sr. Vito traçou um objetivo, iria rever o local onde dedicou toda sua vida.

Reunida, a família decidiu convencê-lo das dificuldades em atender o pedido. Disseram-lhe que sentiam muito, mas não seria possível, porque o lugar era distante, e depois por desmandos e má administração a fábrica fora à falência, e  o descaso  da justiça com a massa falida levaram-na a ruína e demolição por ação do tempo e de vândalos.    

Ao ouvir tamanha desgraça Sr. Vito respirando fundo, tirando uma lágrima do seu rosto que insistia em retornar, acabou concordando, mas não aceitava a ideia de um dia morrer sem antes voltar no local.

Mais um ano se passou e Senhor Vito  completa noventa e um anos. Novamente todos reunidos comemoravam o aniversário do patriarca da família. Mais uma vez senhor Vito não ganhou o presente que mais desejava. Noventa e dois, noventa e três, noventa e quatro, noventa e cinco, noventa e seis anos. Sr. Vito já não apresentava um aspecto tão saudável. Os netos preocupados com sua saúde decidiram  presenteá-lo com o que tanto ele desejava. 

Apesar da dificuldade de locomoção, providenciaram um transporte adequado.  Sr. Vito viajou de Barra do Piraí no Rio de Janeiro, até as margens da rodovia Dutra na grande São Paulo. Depois de viajar por quase 400 km, estava feliz  por chegar ao local onde trabalhou por quase toda sua vida. 

  Ao adentrarem o terreno onde havia a fábrica, Senhor Vito sentia um forte aperto no peito. Tudo ali estava abandonado. Onde antes havia progresso, pujança, emprego e alegria, agora era somente ruínas. Os netos ficavam admirados em verem o avô andar entre os destroços. Caminhava com muita desenvoltura, como se conhecesse cada centímetro do terreno. Parou em frente ao maior símbolo da antiga empresa, a chaminé de aproximadamente cinquenta metros de altura, que teimosamente ousava em se manter de pé. Era tão grande e tão larga que em toda a sua volta no seu interior tinha uma escada, onde por milhares de  vezes, em tantos anos, Senhor Vito subiu para limpar e acompanhar a movimentação dos funcionários, que embarcavam e desembarcavam as mercadorias.

Ao olhar para aquele enorme monumento, Senhor Vito sentiu-se revitalizado. Olhando para os netos disse-lhes com voz embargada:

- Ajudem-me a subir! 

- Vô, não è possível. A chaminé está desativada há muito tempo. E o senhor  não tem a menor condição de subir tantos degraus.

 Senhor Vito pôs-se à frente e lentamente começou a subi-los. A cada degrau sentia-se mais forte, e assim foi subindo um a um. 

Os netos ficaram impressionados com a resistência e capacidade do avô. Senhor Vito sentia-se mais jovem a cada passo e assim depois de superar mais de cinco andares, chegou ao terraço, de onde tinha uma vista privilegiada de toda a fábrica. Encostou-se no parapeito e como se fosse um presente do destino, emocionado, passou a observar a movimentação na  fábrica, homens  trabalhando a todo o vapor. Os empregados corriam de um lado para o outro. Ele ficava do alto controlando toda a movimentação. Olhou para si próprio e viu-se jovem com 26 anos. Surpreso abraçava os netos, cantava e gritava de alegria. Circulava pela chaminé, quando notou uma moça aproximar-se. Lá de cima olhou e viu sua futura esposa acenar, mandando-lhe beijos.  Júlia era linda, uma bela jovem que todos os dias vinha vê-lo trabalhar na chaminé.

Incrédulos com o que estavam presenciando, os netos beliscavam-se para confirmar o que viam. O avô transformara-se em um jovem, bonito, corpo atlético, cabelos negros, esbanjando saúde e comandando um verdadeiro batalhão de funcionários. Viam também a fábrica, que tinha aspecto secular, em pleno funcionamento.  Admiravam a beleza da avó quando moça, chegaram até a brincar com o ele:

- Puxa vô, o senhor não dormiu no ponto ! A vovó era linda, muito faceira!

Ao cair da tarde, depois desta grande aventura, decidiram retornar. Afinal uma boa estrada os esperavam. Senhor Vito deixava o local com o coração partido. Não gostaria de sair dali. A cada degrau que descia, sentia-se mais cansado, e envelhecia. Ao chegar no térreo estava ele com seus noventa e seis anos de idade. Feliz por ter reencontrado suas lembranças, mas triste por estar diante das ruínas e acreditar que não havia cumprido sua missão. Os netos apesar de surpresos com a visão que tiveram, não ousaram contar a ninguém experiência que viveram.

Mais um ano se passou e mais uma vez Senhor Vito pediu o seu presente favorito. Desta vez não lhe foi negado o pedido. O velho os abraçou e emocionado dizia:

- Meus queridos netos, eu preciso voltar naquele lugar, sinto que ainda preciso realizar minha missão.

Os rapazes também estavam ansiosos para reviver algo tão fantástico. E novamente voltaram. Senhor Vito sentia mais dificuldades, porém ao avistar a chaminé encheu-se de energia. Caminhou a  passos largos. Os jovens tentavam acompanhá-lo, mas sentiam-se cansados. Senhor Vito começou a subir novamente os degraus sentindo-se  rejuvenescer.

Chegou ao topo cheio de vida, como se o tempo não tivesse passado, tudo estava como há 70 anos atrás e  neste momento tudo funcionava como antes. A fábrica trabalhava a todo vapor. Se não fossem seus netos ao seu lado, acreditaria que estava realmente vivendo a realidade e não um sonho. Mas seu retorno a este lugar tinha um objetivo. Estava decidido. Não mais desceria da chaminé, sem antes tentar evitar sua destruição. 

Os netos tentaram convencê-lo, que era necessário descer, mas ele estava irredutível. Somente sairia se conseguisse falar com o diretor da fábrica. Pediu que seus netos descessem e entregassem em mãos  uma carta ao diretor.

Ao recebê-la, considerando que seu funcionário havia enlouquecido, o diretor ordenou fechar a chaminé e negava-se em  aproximar-se da mesma, muito menos subir para atender a um pedido de um funcionário que parecia estar emocionalmente desequilibrado. Sr. Vito gritava lá do alto.

- Não arredo o pé daqui. Não enquanto não me ouvirem e me deixarem provar que é possível evitar a destruição desta fábrica.   

E ali passou alguns dias chamando a atenção dos clientes, fornecedores e funcionários, que pela primeira vez em muitos anos paralisaram a produção e pediam que ele descesse.  Sr Vito não atendeu ao pedido dos amigos de trabalho, nem tão pouco de Júlia, sua futura esposa. Após três dias o diretor decidiu atendê-lo, pois a sua atitude estava trazendo prejuízos e constrangimentos.

Ao subir na chaminé, o diretor, acompanhado de assessores, observava a fábrica. Senhor Vito trazia uma mala cheia de recortes de jornais datados  anos à frente, com fotografias e noticiários do local, apresentando as ruínas que restaram. Mostrou-lhe a foto e disse-lhe:

- Senhor, faz-se necessário mudar os rumos de sua administração, caso contrário será  o fim da empresa. Muitos ficarão sem emprego; muitas famílias dependem desta fábrica. A cidade é totalmente dependente dos impostos, no futuro a produção será  indispensável e se for bem administrada, poderá  tornar-se uma grande potência, mas se assim continuar a administrar, este será  seu futuro, terminará  em ruínas, como demonstram estes documentos.

 A princípio o diretor e sua equipe não deram atenção ao que Senhor Vito dizia, porém ficaram surpresos com tantos fatos relatados e fotografados em jornais que nunca ouviram falar. De posse da maleta começaram a descer as escadas com a promessa que iriam se reunir para discutir a situação. Logo perceberam que as fotografias e os jornais estavam se  deteriorando. 

Ao chegar no térreo havia somente pó na maleta. Neste momento, diante do ocorrido, decidiram discutir seriamente o fato e tomaram novas decisões. Contrataram novos profissionais, abriu capital e transformaram a empresa familiar em uma grande empresa privada, nomeando um novo presidente.    Sua eficácia tornou-a numa das maiores indústrias do setor, com filias em todo mundo, mas hoje pela  segunda vez em mais de meio século paralisaram a produção, reuniram todos os funcionários no pátio, acompanhado de familiares, repórteres, amigos, clientes e fornecedores, todos emocionados comemoravam os 97 anos do Sr. Vito, com um busto de bronze, o qual homenageavam o presidente que mais atuou em todos estes anos, diziam que era um homem à  frente do seu tempo, e que acompanhado dos netos, estava orgulhoso de ser reconhecido, e também aplaudiam a coragem de um homem que parecia sempre prever o que iria acontecer, transformando perspectivas em objetivos e metas realizadas.