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quarta-feira, 3 de setembro de 2014

ENTRE O CÉU E A TERRA




Um grande amor não podia terminar assim... Vitória e Ulisses completavam trinta anos de casados. No início ele trabalhava como funcionário público e ela cozinheira de uma das mais antigas cantinas italianas do bairro. Apaixonaram-se. 
Não demorou muito, o sonho do casamento se realizou.  A vida era difícil.  Vitória sonhava em ter o seu próprio restaurante e criar um cardápio especial que pudesse agradar  todos  seus fregueses. Desde criança tinha um sonho que se repetia quase todas as noites,  atender seus fregueses em seus pedidos mais exóticos. O sonho lhe parecia tão real que chegava a sentir o aroma dos pratos que servia. Sentia-se feliz, pois em seus sonhos o cardápio era sempre diferente. 

Com o passar dos anos, o casal conquistou certa estabilidade financeira. Não tiveram filhos. Vitória estimulada pelo marido formou-se em psicologia, mesmo contra sua vontade, pois seu desejo era voltado para área de gastronomia. Depois de formada, Ulisses  a convenceu não a exercer sua profissão de psicóloga, já que tinha condições de sustentá-la com todo conforto, preferia que Vitória ficasse administrando o lar. Argumentava que  sua formação profissional  era apenas por prevenção, pois o futuro é sempre imprevisível. 
Vitória insistia na ideia de abrir o seu restaurante e Ulisses dizia que deixasse esta bobagem de lado. Não havia necessidade de acumular mais uma ocupação. Ela tentava argumentar que gostaria de trabalhar e administrar o restaurante não tomaria muito seu tempo, já que serviria apenas almoço, mas Ulisses mantinha-se irredutível em sua opinião, não gostaria que ela trabalhasse fora.

  A vida de Vitória começou a mudar com  a inesperada morte de  Ulisses, deixando-a muito triste e emocionalmente abalada, embora financeiramente ele a tenha deixado amparada, com uma boa pensão e um seguro de vida que a deixaria tranquila por muito tempo. 
Sentindo-se sozinha e infeliz, Vitória decidiu realizar seu grande sonho. Abriria um restaurante em sua cidade natal. 

Visitou seus parentes e lá encontrou um imóvel antigo com características de abandonado, semelhante ao que via em seus sonhos. Alugou-o e iniciou uma reforma. Deixou o ambiente aconchegante e requintado. Teve o cuidado de decorar o local com quadros de pratos apetitosos. Ornamentou as mesas com toalhas rendadas e arranjos floridos. No entanto o imóvel era muito mal visto pelos moradores da redondeza, diziam até que era mal-assombrado fato que contribuiu para que não conseguisse contratar nenhum funcionário.
Vitória, mesmo sozinha, preparou-se para a inauguração. Seu restaurante ficou do jeitinho que via em seus sonhos. Convidou os conhecidos, amigos e vizinhos e para sua surpresa ninguém compareceu. Os parentes alegaram compromissos e as outras pessoas arranjaram uma desculpa qualquer. Mas, ela era uma mulher obstinada, não permitiu que este fosse o motivo para desanimar. Especializou-se em pratos típicos e  diversificados para atrair a freguesia, mas foi em vão.  Durante alguns dias o restaurante ficou aberto com horário de almoço prolongado, mas ainda assim ninguém compareceu para degustar seus deliciosos pratos.  Vitória levava tudo para as casas de caridade da cidade. Cansada de escutar tantas desculpas e para evitar prejuízos ainda maiores decidiu inverter o horário de atendimento. Passou a servir apenas jantar. 

Na primeira noite, como era de se esperar, não houve movimento no restaurante.  Exausta e decepcionada, deitou-se mais cedo. Já era madrugada, não conseguia dormir, estava muito preocupada com o restaurante, quando ouviu um barulho de  música e um delicioso aroma invadir seu quarto. Levantou-se, abriu a porta dos fundos que dava acesso ao restaurante, e para sua surpresa viu o salão lotado. Todas as mesas estavam ocupadas e os fregueses a aguardavam para serem atendidos. Vitória estava incrédula. Observou que vários ajudantes estavam preparando os pratos para servir ás mesas. Apressou-se em ajudá-los rapidamente. Eram tantos pedidos que quase não deram conta, mas todos foram atendidos. 
Alguns curiosos do lado de fora do estabelecimento debochavam e riam da correria de Vitória, onde incansavelmente andava de um lado para o outro, levando pratos e recolhendo-os.
A partir daquele dia o restaurante nunca mais  foi o mesmo. 
Vitória percebeu que sua clientela era noturna. Todas as noites era um verdadeiro sucesso. Trabalhava durante o dia para preparar os pratos que serviria mais tarde. E quando todos chegavam ela corria de um lado para outro para servi-los. Do lado de fora, também aumentava o público que ficava observando o seu comportamento. Ninguém entendia  tanta correria para atender “ninguém”, pois o restaurante continuava vazio. Começaram a chamá-la de louca e esclerosada. Vitória sentia-se ofendida e convidava  todos para que entrassem e se misturassem as pessoas que estavam lá dentro e ainda afirmava que a cada dia o movimento crescia. Mas não era preciso entrar, pois das janelas do restaurante, podia se notar que o mesmo estava completamente vazio.

Os curiosos convenceram o médico da cidade que ela precisava ser internada, pois estava cada vez pior. O médico, especialista em psiquiatria, conversou com Vitória, que a todo momento, dizia não entender do que ele estava dizendo. Convidou-o a visitar seu restaurante e ver com seus próprios olhos o movimento de todas as noites. O médico, concordou. Iria naquela mesma noite. Ao chegar ao local encontrou dezenas de moradores em frente ao estabelecimento, observando Vitória, que andava de um lado para outro servindo as mesas vazias. Incomodou-se com o que estava presenciando dirigiu-se para a porta, e foi recebido pela anfitriã. Ao entrar, o médico deparou-se com o salão cheio. Todas as mesas estavam ocupadas. Avistou conhecidos e foi rodeado por muitas pessoas que não via há muito tempo. Antes que pudesse entender o que realmente estava acontecendo foi abordado por um antigo paciente.

- Doutor há quanto tempo? Eu estava esperando que o senhor viesse. Na verdade sabíamos que um dia o senhor viria. Lembra-se daquela paciente Dona Lenir, que por não ter condições de pagar todas as consultas, não teve do senhor um atendimento digno, e suicidou-se por  negligência médica? Pois é... Era minha esposa! 
O médico  ficou sem saber o que responder, foi abordado por outros conhecidos que ali estavam para cobrar satisfações por atos inconsequentes que ele cometera causando mortes, doenças crônicas, entre outras situações. Este tentava se desculpar, mas aquelas pessoas diziam que não havia perdão. Ordenaram que não fizesse nada que pudesse prejudicar dona Vitória, não poderia fechar o restaurante, eles não permitiriam que ela fosse internada, afinal não era louca. Ameaçaram que se fizesse algo que a magoasse, com certeza em breve estaria ali entre eles.  Assustado o médico prometeu deixá-la em paz.  Não voltou mais no restaurante e convenceu a todos quanto a sua saúde mental de Vitória, ela não precisava de internação.

O delegado ficou sabendo da visita do médico no local e não entendia por que ele  não tomou nenhuma providência. Estava irado, pois o tumulto que se formava todas as noites na frente do restaurante por curiosos, gerava reclamações e denúncias na delegacia, causando-lhe grandes transtornos. Decidiu então,  visitar o local. Colocaria um ponto final nesta história. Ao chegar ao recinto deparou-se com o tradicional tumulto do lado de fora, e observou que não havia ninguém, mas Vitória, como sempre, andava com pratos nas mãos de um lado para o outro como se a casa estivesse cheia. O delegado solicitou que todos fossem para suas casas. Após acabar com a desordem, entrou. Seus olhos não queriam acreditar no que via. Muitos dos que estavam sentados as mesas levantaram-se e caminharam em sua direção para cumprimentá-lo.

- Senhor delegado, que surpresa agradável. Que bom que o senhor veio... Temos algumas coisas para lhe falar. E o fizeram lembrar das situações de  abuso de autoridade, injustiças cometidas, conivência com contrabandistas, corrupção e principalmente das atrocidades com moradores que ousassem contrariá-lo, entre outros desmandos. Disseram que não permitiriam que ele fizesse nada contra Vitória, pois caso contrário, iriam buscá-lo. Deram-lhe um tempo para se redimir, caso não os atendessem passaria também a frequentar o restaurante todas as noites. O delegado assustado saiu sem dizer uma só palavra e resolveu não se envolver neste caso, deixando Vitória em paz.

O prefeito recebeu várias denúncias da omissão do delegado, que também havia visitado o restaurante e não tinha tomado nenhuma providência, resolveu assumir o caso e acabar com aquela anarquia. Na mesma noite, ao chegar ao local, fez questão de conversar com várias pessoas do lado de fora que relataram as loucuras da proprietária. Ele mesmo comprovou os fatos. Pedia calma a seus eleitores e se propôs a acabar com aquela deprimente situação. Ao entrar foi recebido pelos fregueses assíduos do restaurante, encontrou vários políticos que cobraram a falta de ética da sua administração, e os conchavos que derrubaram vários deles, o fizeram lembrar das falcatruas que se envolveu para se perpetuar no poder. Foi cobrado por promessas nunca cumpridas, desvios de verbas dos mais pobres e de enriquecimento com dinheiro público. O prefeito desesperado, via-se entre a cruz e a espada, comprometeu-se a se redimir e reverter toda as acusações.

Jurou que mudaria sua maneira de governar, envolver-se-ia em causas sociais. Prometeu incentivar o público a frequentar o restaurante. Com medo de que pudesse tornar-se mais um dos fregueses, passou a promover o restaurante de dona Vitória.
A partir de então, o restaurante passou a ser muito frequentado. Durante o dia Vitória servia almoço a preço simbólico, com apoio da prefeitura para todos moradores da cidade e a noite o restaurante era frequentado pelos fantasmas da madrugada, que estavam ali somente para exigir justiça de todos aqueles que deviam alguma coisa e que por algum motivo se aventurassem a entrar para jantar.

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