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sexta-feira, 29 de agosto de 2014

CANDANGO


CANDANGO

“Mais uma vez fomos expulsos do forró. Corremos para não sermos agredidos. Embrenhamos na mata e nos escondemos. Ás margens do Rio Pajeú paramos para descansar. Tudo era motivo de risos e alegria. Éramos jovens e só queríamos nos divertir, Firmino de Jesus e eu, José, filho do velho José Manoel da Silva um dos mais  antigos moradores de Afogado da Ingazeira.“Figuras” conhecidas de  Carnaíba á Solidão  e de Tabira á Iguaraci, especialmente nas fazendas da região do Pajeú.
Naquelas bandas todos conheciam a nossa fama de dançarinos extrovertidos, “boa pinta”, aliados a uma maneira alegre de viver. As mulheres não podiam nos ver chegar e logo se atiravam em nossos braços, pois queriam dançar, e esta era a nossa maior  virtude, animávamos as festas a noite inteira. Por este motivo nos tornamos alvos dos enciumados  maridos e namorados que desconhecedores da arte de conduzir uma dama num rastapé ficavam  enfurecidos e desconfiados. Durante a noite não dispensávamos nenhuma moça que se predispusesse a dançar. Nossos pais, experientes  e conscientes dos riscos que corríamos, inquietos  com a situação, trouxeram da capital Dr. Januário que estava recrutando homens para construção de uma nova cidade no Planalto Central onde seria instalada a nova capital do Brasil. Dizia que o presidente pagaria muito bem para quem fosse trabalhar nesta empreitada. Firmino que só pensava em se dar bem na vida vislumbrou uma ótima oportunidade de conhecer novos lugares, mulheres, diversão, trabalho  e muito dinheiro. Encantado com a proposta Firmino de Jesus convenceu-me a enfrentar o novo desafio. Não aceitávamos a ideia de separação, pois com o passar dos anos nos tornamos “ irmãos’.
Dr. Januário, influente na política, especializou-se em contratar operários para enviar  ao planalto central como mão de obra barata para construção da nova capital. Ele mesmo se encarregou de providenciar os documentos, além do transporte e alojamento. Tínhamos que levar estritamente o necessário. Guardamos todos nossos pertences numa trouxa onde o cadeado era apenas um nó e partimos num pau de arara. Viajamos por muitos dias com dezenas de desconhecidos onde todos estavam em busca do mesmo sonho. Durante a longa viagem cantávamos músicas que lembravam nossa Terra Natal.  Entoando repetidas vezes o sucesso de Luiz Gonzaga, onde a letra retratava a nossa partida...
“... Quando vim do sertão seu moço do meu bodocó. A maloca era o saco e o cadeado era o nó. Só trazia coragem e a cara, viajando num pau-de-arara, Eu penei mas aqui cheguei... Eu penei mais aqui cheguei...”
Enquanto cantávamos podíamos presenciar homens disfarçando suas lágrimas, que caíam sobre a esperança de um futuro promissor, além da saudade dos que ficavam para trás. Durante a viagem ouvimos falar sobre o “eldorado”, a terra prometida,  onde nasceria  a nova capital. Teríamos pão e leite, casa e comida á vontade, segurança, para quem quisesse ficar teria terra para construir sua casa e não faltaria emprego nem mulher.
Atravessamos da caatinga ao cerrado e chegamos numa linda manhã ensolarada. Como sertanejos nunca havíamos saído da nossa pequena cidade. Ficamos desnorteados, pois nem bem havíamos chegado ao alojamento nos levaram para o canteiro de obras.  Nosso espanto foi tamanho, na verdade, não conseguíamos entender o que estava acontecendo. O  lugar  parecia um formigueiro, homens correndo de um lado para outro carregando tijolos, areia, cimento, subiam em andaimes trançados entre ferros e tábuas elevando os trabalhadores ás alturas, até então nunca visto por nós.
 Em poucos dias estávamos exaustos, mortos de cansaço, nunca tínhamos trabalhado tanto em nossas vidas. O cronograma parecia estar atrasado e os encarregados exigiam o máximo de cada trabalhador.
Todos os dias durante o serviço ouvíamos o refrão: - “Vamos lá minha gente, O Homem tem pressa” tínhamos que nos superar, pois tudo teria que estar pronto na data programada para a inauguração. Mesmo com o excesso de serviço, Firmino de Jesus, como sempre, conseguia fugir do trabalho. Descobriu os barracões improvisados das festas e orgias, passava os fins das tardes na folia e adentrava a noite nos forrós da região. Todas as sextas e sábados saíamos juntos para dançar, com isso logo ficamos conhecidos, desta vez fomos mais cautelosos, pois o ambiente parecia hostil. Não sabíamos ler e nem escrever. Eu acatava os serviços que o empreiteiro me designava, mas Firmino com sua lábia e oratória descoordenada conseguia argumentos para influenciar o encarregado que atribuía-lhe serviços mais leves. Apesar da empatia entre o chefe da equipe e Firmino, por várias vezes viu-se obrigado a chamar-lhe a atenção, pois estava recebendo visitas de muitas mulheres durante o expediente, além de não seguir as regras da segurança que já eram precárias. Num afã de demonstrar sua destreza e exibir-se para elas, Firmino pulava de um andaime para outro, simulando estar dançando um forró bem apertadinho sobre as tábuas, deixando as moças assanhadas.
Numa tarde, logo após o almoço observei um alvoroço que tomou conta de todo o canteiro de obras, um corre-corre, os trabalhadores foram convocados para se concentrar em frente das torres gêmeas do Congresso que estava em construção. O presidente Juscelino estava ali pessoalmente. Pudemos então conhecer o famoso ”homem”, que esbanjava simpatia, recebia e apertava as mãos dos trabalhadores simples e humildes. Como sempre, Firmino não se conteve, subiu num palanque improvisado onde estava o presidente, abraçou-o e o beijou. De longe eu observava e não acreditava no que estava acontecendo, lá estava ele outra vez, Firmino de Jesus, com sua costumeira simplicidade, desinibido, abraçado ao presidente, que foi interrompido antes mesmo  que começasse a falar. Firmino tomou o microfone e dedicou-lhe um conjunto de palavras sem concordância, mas que traziam em seu bojo, elogios, principalmente á coragem de um homem que estava gerando emprego e progresso para aquela região e sobretudo enchendo de esperança o coração de milhares de brasileiros. O presidente agradecendo a manifestação daquele trabalhador tomou conta da situação mantendo Firmino de Jesus ao seu alcance e abraçado a ele, discursou esbanjando sua fluência verbal aliado ao seu poderio de persuasão, envolveu os trabalhadores que se comprometeram com a missão de terminar aquele conjunto de obras até a data determinada, e num só coro aqueles humildes homens gritaram e jogaram seus capacetes para o ar como demonstração de comprometimento e aliança    com o presidente, deixando claro que se empenhariam ainda mais em cumprir rigorosamente o cronograma estabelecido para o término das obras. No dia seguinte estava estampado nos jornais que circulavam no canteiro de obras, a figura do presidente abraçado á Firmino. Num momento histórico o pobre rapaz vindo do sertão de Pernambuco,  Afogados da Ingazeira, tornara-se uma celebridade. Muitos repórteres de outros estados procuravam-no por toda parte com a intenção entrevistá-lo. Confesso que senti uma pontinha de ciúmes. Fiquei encarregado de administrar sua fama repentina, com agendamentos, além de controlar outras mulheres que passaram a procurá-lo.  Firmino era convidado para todas as festas e passou a ser recebido como se fosse uma celebridade. Na esteira do seu sucesso eu aproveitava o momento e me divertia também. Antes que a notícia caísse em esquecimento numa manhã, ouvimos gritos no alto de uma das torres do Congresso que estava sendo revestido, um barulho chamou-me a atenção, era Firmino querendo outra vez ser o centro das atenções. Fiquei paralisado quando vi que ele tropeçou  num dos objetos que desordenadamente ficavam espalhados sobre o andaime, contribuindo para um cenário de alto risco, comprometendo o deslocamento dos trabalhadores de um lado para outro. Firmino de Jesus caiu num salto livre feito uma estrela cadente, girou no ar com as pernas e braços abertos, seu corpo foi jogado de um lado para outro batendo nos ferros trançados que seguravam o andaime. Num momento de desespero corri na tentativa de ajudá-lo e quando cheguei Firmino agonizava.  Pedi licença a todos que o rodeava, segurei sua mão, ele com lágrimas nos olhos murmurava palavras sem muita definição, mas pude ouvir claramente  quando disse:
- Zé, avise meu pai que volto mais não! A queda de Firmino chocou-me profundamente.
Os jornais do dia seguinte em destaque trouxeram-no na capa outra vez, mas desta vez com as manchetes: “O candango partiu. Aquele que havia abraçado o presidente morreu”.
Após o singelo funeral fiquei encarregado de voltar á Afogados da Ingazeira e levar a notícia a seus pais, com a passagem paga pela construtora e com a triste missão de dar-lhes a notícia, cheguei ao destino. Os jornais já haviam noticiado o falecimento de Firmino, inclusive contando toda a sua trajetória. “O candango preferido do presidente.”  Neste noticiário mencionavam também meu nome em diversas partes da reportagem. A dor havia tomado conta de todos na cidade. O fato de ter ido trabalhar na construção nova capital, conhecido de perto o presidente e ser amigo-irmão de Firmino de Jesus deu-me notoriedade, obrigando-me a constantemente dar entrevistas para os jornais inclusive os da capital, tornando-me uma personalidade na cidade de Afogados da Ingazeira e toda a região do Pajeú. Fui homenageado. O prefeito orgulhoso de meu feito e de levar o nome de nossa cidade no coração do país, convidou-me para trabalhar na prefeitura. A minha experiência no planalto central e a convivência com admirável  Firmino de Jesus, meu irmão de coração,  despertou em mim um novo homem. Passei a ser mais exigente. Meu novo posto deu-me a condição de estudar. A leitura trouxe-me informações fascinantes sobre a vida, a economia e a sociedade, mudando meus conceitos, dando-me a oportunidade de descobrir um mundo novo. Esta nova estrutura de vida me proporcionou a candidatura na câmara municipal como vereador. Ganhei com uma grande margem de votos. O meu excelente desempenho cominou com minha indicação à prefeitura. O resultado das eleições não trouxe surpresas, venci mais uma vez a eleição para prefeito. Como não havia reeleição candidatei-me a deputado estadual. O povo de minha cidade não me desamparou, cheguei à câmara cheio de objetivos e muita dedicação. Por isso representei-os por duas legislações, uma nova conjuntura partidária e interesse do povo sofrido do agreste, defendendo causas nobres, motivos pelos quais fui indicado a deputado federal com o apoio de coligações. Defendendo os mesmos princípios fui eleito Deputado Federal com o maior número de votos do nordeste, a possibilidade de estar volta para onde tudo começou, deixava-me ansioso. Uma alegria incontida tomou conta de meu ser. Eu estava novamente no planalto central, na capital do país, Brasília o coração do Brasil, e a seus pés humildemente reverenciei sua beleza, funcionalidade e nomeadamente responsável pelo destino de todos brasileiros. O canteiro de obras antes tão assustador agora era motivo de orgulho e esperança. Voltei ao passado ao caminhar por suas avenidas largas e arborizadas, entre os gigantescos gramados, como pano de fundo uma arquitetura arrojada que mostra ao mundo a qualidade de nossos arquitetos e urbanistas coadjuvados por homens simples, que abandonaram suas famílias para erguer um suntuoso marco de liberdade. Quando me aproximei das torres gêmeas do Congresso destacando no conjunto da obra as suas cúpulas, côncavo e convexo, pude constatar que não se tratava de um sonho. Deus me deu a oportunidade de estar ali em frente à casa do povo o Congresso Nacional. As lembranças foram inevitáveis tornaram-se nítidas como um videoteipe. A emoção tomou conta do meu coração e as lágrimas rolaram pelo meu rosto. Em segundos toda minha vida passou em minha mente, viajando no tempo e no espaço,  o passado aflorou com tamanha nitidez que pude ver a minha maior inspiração de vida, meu amigo e meu irmão  Firmino de Jesus  abraçado com aquele que o tempo tratou de imortalizá-lo como o maior presidente que o Brasil já teve. Em meu discurso de posse não esqueci de agradecer á todos que me ajudaram a chegar a tão honroso cargo na política brasileira, mas dediquei a maior parte para homenagear aos migrantes responsáveis pela conclusão do sonho que se tornou realidade. Em nome de todos dei como exemplo Firmino de Jesus, um jovem cheio de vida e sonho, que pensou em participar do crescimento do país sem abrir mão de sua liberdade e que sem cultura não teve tempo para se integrar nesta nova realidade, dando sua própria vida como tantos outros anônimos o fizeram. Tenho certeza que o meu sucesso e desempenho neste mandato terão como lema manter viva a ideia dos candangos que sem limites morreram sem poder reverenciar esta realidade que é a nossa capital do país, Brasília.


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