CANDANGO
“Mais uma vez fomos expulsos do forró.
Corremos para não sermos agredidos. Embrenhamos na mata e nos escondemos. Ás
margens do Rio Pajeú paramos para descansar. Tudo era motivo de risos e
alegria. Éramos jovens e só queríamos nos divertir, Firmino de Jesus e eu,
José, filho do velho José Manoel da Silva um dos mais antigos moradores de Afogado da
Ingazeira.“Figuras” conhecidas de
Carnaíba á Solidão e de Tabira á
Iguaraci, especialmente nas fazendas da região do Pajeú.
Naquelas bandas todos conheciam a
nossa fama de dançarinos extrovertidos, “boa pinta”, aliados a uma maneira
alegre de viver. As mulheres não podiam nos ver chegar e logo se atiravam em
nossos braços, pois queriam dançar, e esta era a nossa maior virtude, animávamos as festas a noite
inteira. Por este motivo nos tornamos alvos dos enciumados maridos e namorados que desconhecedores da
arte de conduzir uma dama num rastapé ficavam
enfurecidos e desconfiados. Durante a noite não dispensávamos nenhuma
moça que se predispusesse a dançar. Nossos pais, experientes e conscientes dos riscos que corríamos,
inquietos com a situação, trouxeram da
capital Dr. Januário que estava recrutando homens para construção de uma nova
cidade no Planalto Central onde seria instalada a nova capital do Brasil. Dizia
que o presidente pagaria muito bem para quem fosse trabalhar nesta empreitada.
Firmino que só pensava em se dar bem na vida vislumbrou uma ótima oportunidade
de conhecer novos lugares, mulheres, diversão, trabalho e muito dinheiro. Encantado com a proposta
Firmino de Jesus convenceu-me a enfrentar o novo desafio. Não aceitávamos a ideia de separação, pois com o passar dos anos nos tornamos “ irmãos’.
Dr. Januário, influente na política,
especializou-se em contratar operários para enviar ao planalto central como mão de obra barata
para construção da nova capital. Ele mesmo se encarregou de providenciar os
documentos, além do transporte e alojamento. Tínhamos que levar estritamente o
necessário. Guardamos todos nossos pertences numa trouxa onde o cadeado era
apenas um nó e partimos num pau de arara. Viajamos por muitos dias com dezenas
de desconhecidos onde todos estavam em busca do mesmo sonho. Durante a longa
viagem cantávamos músicas que lembravam nossa Terra Natal. Entoando repetidas vezes o sucesso de Luiz
Gonzaga, onde a letra retratava a nossa partida...
“... Quando vim do sertão seu moço do meu bodocó. A maloca era o saco e o
cadeado era o nó. Só trazia coragem e a cara, viajando num pau-de-arara, Eu
penei mas aqui cheguei... Eu penei mais aqui cheguei...”
Enquanto cantávamos podíamos
presenciar homens disfarçando suas lágrimas, que caíam sobre a esperança de um
futuro promissor, além da saudade dos que ficavam para trás. Durante a viagem
ouvimos falar sobre o “eldorado”, a terra prometida, onde nasceria
a nova capital. Teríamos pão e leite, casa e comida á vontade,
segurança, para quem quisesse ficar teria terra para construir sua casa e não faltaria
emprego nem mulher.
Atravessamos da caatinga ao cerrado e
chegamos numa linda manhã ensolarada. Como sertanejos nunca havíamos saído da
nossa pequena cidade. Ficamos desnorteados, pois nem bem havíamos chegado ao
alojamento nos levaram para o canteiro de obras. Nosso espanto foi tamanho, na verdade, não
conseguíamos entender o que estava acontecendo. O lugar
parecia um formigueiro, homens correndo de um lado para outro carregando
tijolos, areia, cimento, subiam em andaimes trançados entre ferros e tábuas
elevando os trabalhadores ás alturas, até então nunca visto por nós.
Em poucos dias estávamos exaustos, mortos de
cansaço, nunca tínhamos trabalhado tanto em nossas vidas. O cronograma parecia
estar atrasado e os encarregados exigiam o máximo de cada trabalhador.
Todos os dias durante o serviço
ouvíamos o refrão: - “Vamos lá minha gente, O Homem tem pressa” tínhamos que
nos superar, pois tudo teria que estar pronto na data programada para a
inauguração. Mesmo com o excesso de serviço, Firmino de Jesus, como sempre,
conseguia fugir do trabalho. Descobriu os barracões improvisados das festas e
orgias, passava os fins das tardes na folia e adentrava a noite nos forrós da
região. Todas as sextas e sábados saíamos juntos para dançar, com isso logo
ficamos conhecidos, desta vez fomos mais cautelosos, pois o ambiente parecia
hostil. Não sabíamos ler e nem escrever. Eu acatava os serviços que o
empreiteiro me designava, mas Firmino com sua lábia e oratória descoordenada
conseguia argumentos para influenciar o encarregado que atribuía-lhe serviços
mais leves. Apesar da empatia entre o chefe da equipe e Firmino, por várias
vezes viu-se obrigado a chamar-lhe a atenção, pois estava recebendo visitas de
muitas mulheres durante o expediente, além de não seguir as regras da segurança
que já eram precárias. Num afã de demonstrar sua destreza e exibir-se para
elas, Firmino pulava de um andaime para outro, simulando estar dançando um
forró bem apertadinho sobre as tábuas, deixando as moças assanhadas.
Numa tarde, logo após o almoço
observei um alvoroço que tomou conta de todo o canteiro de obras, um
corre-corre, os trabalhadores foram convocados para se concentrar em frente das
torres gêmeas do Congresso que estava em construção. O
presidente Juscelino estava ali pessoalmente. Pudemos então conhecer o famoso
”homem”, que esbanjava simpatia, recebia e apertava as mãos dos trabalhadores
simples e humildes. Como sempre, Firmino não se conteve, subiu num palanque
improvisado onde estava o presidente, abraçou-o e o beijou. De longe eu
observava e não acreditava no que estava acontecendo, lá estava ele outra vez,
Firmino de Jesus, com sua costumeira simplicidade, desinibido, abraçado ao
presidente, que foi interrompido antes mesmo
que começasse a falar. Firmino tomou o microfone e dedicou-lhe um
conjunto de palavras sem concordância, mas que traziam em seu bojo, elogios,
principalmente á coragem de um homem que estava gerando emprego e progresso
para aquela região e sobretudo enchendo de esperança o coração de milhares de
brasileiros. O presidente agradecendo a manifestação daquele trabalhador tomou conta
da situação mantendo Firmino de Jesus ao seu alcance e abraçado a ele,
discursou esbanjando sua fluência verbal aliado ao seu poderio de persuasão,
envolveu os trabalhadores que se comprometeram com a missão de terminar aquele
conjunto de obras até a data determinada, e num só coro aqueles humildes homens
gritaram e jogaram seus capacetes para o ar como demonstração de
comprometimento e aliança com o presidente, deixando claro que se
empenhariam ainda mais em cumprir rigorosamente o cronograma estabelecido para
o término das obras. No dia seguinte estava estampado nos jornais que
circulavam no canteiro de obras, a figura do presidente abraçado á Firmino. Num
momento histórico o pobre rapaz vindo do sertão de Pernambuco, Afogados da Ingazeira, tornara-se uma
celebridade. Muitos repórteres de outros estados procuravam-no por toda parte
com a intenção entrevistá-lo. Confesso que senti uma pontinha de ciúmes. Fiquei
encarregado de administrar sua fama repentina, com agendamentos, além de
controlar outras mulheres que passaram a procurá-lo. Firmino era convidado para todas as festas e
passou a ser recebido como se fosse uma celebridade. Na esteira do seu sucesso
eu aproveitava o momento e me divertia também. Antes que a notícia caísse em
esquecimento numa manhã, ouvimos gritos no alto de uma das torres do Congresso
que estava sendo revestido, um barulho chamou-me a atenção, era Firmino
querendo outra vez ser o centro das atenções. Fiquei paralisado quando vi que
ele tropeçou num dos objetos que
desordenadamente ficavam espalhados sobre o andaime, contribuindo para um
cenário de alto risco, comprometendo o deslocamento dos trabalhadores de um
lado para outro. Firmino de Jesus caiu num salto livre feito uma estrela
cadente, girou no ar com as pernas e braços abertos, seu corpo foi jogado de um
lado para outro batendo nos ferros trançados que seguravam o andaime. Num
momento de desespero corri na tentativa de ajudá-lo e quando cheguei Firmino
agonizava. Pedi licença a todos que o
rodeava, segurei sua mão, ele com lágrimas nos olhos murmurava palavras sem
muita definição, mas pude ouvir claramente
quando disse:
- Zé, avise meu pai que volto mais
não! A queda de Firmino chocou-me profundamente.
Os jornais do dia seguinte em destaque
trouxeram-no na capa outra vez, mas desta vez com as manchetes: “O candango
partiu. Aquele que havia abraçado o presidente morreu”.
Após o singelo funeral fiquei
encarregado de voltar á Afogados da Ingazeira e levar a notícia a seus pais,
com a passagem paga pela construtora e com a triste missão de dar-lhes a
notícia, cheguei ao destino. Os jornais já haviam noticiado o falecimento de
Firmino, inclusive contando toda a sua trajetória. “O candango preferido do
presidente.” Neste noticiário mencionavam
também meu nome em diversas partes da reportagem. A dor havia tomado conta de
todos na cidade. O fato de ter ido trabalhar na construção nova capital,
conhecido de perto o presidente e ser amigo-irmão de Firmino de Jesus deu-me
notoriedade, obrigando-me a constantemente dar entrevistas para os jornais
inclusive os da capital, tornando-me uma personalidade na cidade de Afogados da
Ingazeira e toda a região do Pajeú. Fui homenageado. O prefeito orgulhoso de
meu feito e de levar o nome de nossa cidade no coração do país, convidou-me
para trabalhar na prefeitura. A minha experiência no planalto central e a
convivência com admirável Firmino de
Jesus, meu irmão de coração, despertou
em mim um novo homem. Passei a ser mais exigente. Meu novo posto deu-me a
condição de estudar. A leitura trouxe-me informações fascinantes sobre a vida,
a economia e a sociedade, mudando meus conceitos, dando-me a oportunidade de
descobrir um mundo novo. Esta nova estrutura de vida me proporcionou a
candidatura na câmara municipal como vereador. Ganhei com uma grande margem de
votos. O meu excelente desempenho cominou com minha indicação à prefeitura. O
resultado das eleições não trouxe surpresas, venci mais uma vez a eleição para
prefeito. Como não havia reeleição candidatei-me a deputado estadual. O povo de
minha cidade não me desamparou, cheguei à câmara cheio de objetivos e muita
dedicação. Por isso representei-os por duas legislações, uma nova conjuntura
partidária e interesse do povo sofrido do agreste, defendendo causas nobres,
motivos pelos quais fui indicado a deputado federal com o apoio de coligações.
Defendendo os mesmos princípios fui eleito Deputado Federal com o maior número
de votos do nordeste, a possibilidade de estar volta para onde tudo começou,
deixava-me ansioso. Uma alegria incontida tomou conta de meu ser. Eu estava
novamente no planalto central, na capital do país, Brasília o coração do
Brasil, e a seus pés humildemente reverenciei sua beleza, funcionalidade e
nomeadamente responsável pelo destino de todos brasileiros. O canteiro de obras
antes tão assustador agora era motivo de orgulho e esperança. Voltei ao passado
ao caminhar por suas avenidas largas e arborizadas, entre os gigantescos
gramados, como pano de fundo uma arquitetura arrojada que mostra ao mundo a
qualidade de nossos arquitetos e urbanistas coadjuvados por homens simples, que
abandonaram suas famílias para erguer um suntuoso marco de liberdade. Quando me
aproximei das torres gêmeas do Congresso destacando no conjunto da obra as suas
cúpulas, côncavo e convexo, pude constatar que não se tratava de um sonho. Deus
me deu a oportunidade de estar ali em frente à casa do povo o Congresso
Nacional. As lembranças foram inevitáveis tornaram-se nítidas como um
videoteipe. A emoção tomou conta do meu coração e as lágrimas rolaram pelo meu
rosto. Em segundos toda minha vida passou em minha mente, viajando no tempo e
no espaço, o passado aflorou com tamanha
nitidez que pude ver a minha maior inspiração de vida, meu amigo e meu irmão Firmino de Jesus abraçado com aquele que o tempo tratou de
imortalizá-lo como o maior presidente que o Brasil já teve. Em meu discurso de
posse não esqueci de agradecer á todos que me ajudaram a chegar a tão honroso
cargo na política brasileira, mas dediquei a maior parte para homenagear aos
migrantes responsáveis pela conclusão do sonho que se tornou realidade. Em nome
de todos dei como exemplo Firmino de Jesus, um jovem cheio de vida e sonho, que
pensou em participar do crescimento do país sem abrir mão de sua liberdade e
que sem cultura não teve tempo para se integrar nesta nova realidade, dando sua
própria vida como tantos outros anônimos o fizeram. Tenho certeza que o meu
sucesso e desempenho neste mandato terão como lema manter viva a ideia dos
candangos que sem limites morreram sem poder reverenciar esta realidade que é a
nossa capital do país, Brasília.
Nenhum comentário:
Postar um comentário