Mais um
dia. A nossa cidade estava reluzente. As ruas arborizadas e o sol iluminava com
todo seu esplendor. A admiração por esta maravilha era interrompida pelo
barulho da reforma do velho casarão na praça, onde várias lojas estavam sendo
montadas. Mesmo antes do término do casarão, um homem ainda jovem, de
aproximadamente 35 anos, apressou-se em alugar uma sala, que ficava de frente
para a rua. Para surpresa de todos, colocou um letreiro informando a finalidade
da loja com letras enormes.
“S A P A T A R I A”.
Seu
nome é Zeca. Teve o cuidado de decorar a sapataria com estilo antigo.
Ornamentou com um grande relógio de parede, preparou a bigorna, cola, avental
de couro. Usava um bigodinho, tinha cabelos negros e um olhar marcante. A
desconfiança das pessoas da cidade foi superada pela amizade que rapidamente
conquistou junto aos moradores. Em menos de um ano de instalação já era o mais
querido comerciante da praça. Dizem que certa tarde a senhora Bonfá chegou à
sapataria com grande dificuldade e começou a reclamar da vida. Lamentava que
tinha que ser internada, mas não tinha condições, nem convênio médico, para
tratar do seu grave problema de circulação. Zeca a ouvia pacientemente e após
consertar a sua sandália levou-a até a sua casa. Durante a caminhada
confortou-a dizendo que ficasse tranquila, pois tudo seria resolvido.
Para a
surpresa de todos, um concurso de uma
rádio local, presenteou dona Bonfá com um internamento e tratamento médico, o
qual curou-a definitivamente. O velho Mané também foi agraciado, após se
queixar com o sapateiro, conseguiu o emprego que tanto desejava numa das
filiais da Petrobrás. A turma do morro, frequentadores assíduos da sapataria,
reclamava da falta de água, de luz, esgoto e asfalto. Não demorou muito, o
governo Federal aprovou uma verba, para o saneamento básico daquela região,
pois esta faria parte de um circuito turístico que a cidade fora contemplada
para fazer parte.
Dona Celina, a mulher mais idosa do bairro ,dizem que ela tem 90, 93, 95 anos, na
verdade nunca se questionou a idade daquela senhora, reparou que os sapatinhos
de seus netinhos precisavam de conserto e decidiu levá-los a sapataria. Apesar
de sua idade, caminhava firme, atravessou as ruas cautelosamente e chegou à
praça de onde podia avistar o casarão todo reformado. Parou, observou, e
percebeu que alguma coisa lhe chamava atenção. Notou que a decoração da
sapataria era semelhante a uma que frequentava quando criança. Teve a
oportunidade de lembrar de seus pais, de seus irmãos, principalmente de seu
irmão caçula, que há mais de sessenta anos não via, nunca tivera informações ou
mesmo notícias sobre ele.
Com
tantas lembranças passou a caminhar mais lentamente. Na verdade se deliciava
com tantas recordações maravilhosas. Seu coração disparou quando viu aquele
homem que veio recebê-la... Mas era o mesmo rapaz?!...Era idêntico ao sapateiro
que tinha em sua mente, como podia ser? Seria ele o bisneto do velho sapateiro
que trabalhava em sua cidade quando era criança? Zeca a recebe com atenção. A
princípio um pouco tenso, mas respira fundo e dando-lhe um sorriso a
cumprimenta:
- Olá
Nina!
Era assim que a chamavam
quando criança.
- Como
sabe o meu apelido?
- Eu
sei tudo. Sei também onde está seu irmão. Bateu-lhe um certo desespero
misturado a ansiedade. Dona Celina segurou-lhe as mãos e implorava que lhe
desse informações sobre seu querido irmão. Zeca pediu que se acalmasse:
-
Sente-se. Acalme-se. Vou lhe contar enquanto conserto os sapatinhos de seus
netinhos. Dona Celina ouvia atentamente, e logo começou a contar toda a sua
história, e sem que ela percebesse narrava situações em que o sapateiro
participava. Ao terminar o conserto Zeca pediu que Dona Celina voltasse para a
casa, pois teria uma surpresa muito agradável. Quando o carteiro passou,
entregou-lhe uma carta de seu irmão, há tanto tempo desaparecido. Dona Celina
estava incrédula. Saiu pelas ruas, para tirar informações do sapateiro, só
recebia referências maravilhosas sobre ele, que ajudou o prefeito a fechar um
grande contrato com empresas para se instalar no município, gerando desta forma
muitos empregos. Conseguiu incentivar os moradores a reformarem suas casas e
construírem em lugares seguros, longe dos morros, e livres do risco de
desabamentos. Escolas para todas as crianças carentes. Vagas para adolescentes em cursos
profissionalizantes. Dona Celina ficou encantada. Em sua
mente voltou a imagem de infância, lembrou-se que havia tirado uma fotografia
em frente a sapataria, que estava guardada em seu baú. Apressou-se
e rapidamente voltou para sua casa, procurou até encontrar. Seus olhos não
podiam acreditar no que viram. A decoração do casarão da foto era exatamente
igual a da sapataria de Zeca. Saiu e foi até lá. Chegando surpreendeu-se ao
notar que os detalhes eram os mesmos, a bigorna, a cola, o avental pendurado no
mesmo lugar. Um calendário de 1907, o relógio de parede, os móveis, a banqueta.
Tudo igual. Olhava para a fotografia e falava admirada:
- Não
sei como você consegue? Sabe quando éramos pequenos, meu pai já estava muito doente,
com tuberculose... Antes mesmo que Dona Celina terminasse de falar, Zeca
segurou-lhe nas mãos e disse:
- Eu
sei Nina! Você entrou por esta porta e chorava dizendo que seu pai iria morrer,
e que vocês ficariam desamparados. Apesar dos exames da época, os médicos
tiveram que reconhecer que haviam errado no diagnóstico, pois não passava de
uma gripe forte.
- Foi
você, não foi? Não é possível, ele estava á beira da morte, de repente, sarou e
cuidou de toda a família, como se nada tivesse acontecido.
- Sim
Nina, fui eu. Por alguma razão fui escolhido para viver assim. Há séculos ando
pelo mundo como sapateiro, ajudando a todos que me procuram. Fico em cada lugar
até que os moradores comecem a desconfiar de alguma coisa, porque eles
envelhecem e eu permaneço jovem. Então este é o sinal que chegou a hora de
mudar de lugar e recomeçar. Esta é minha missão. Dona Celina levantou-se e disse
-
Agradeço a Deus por esta oportunidade, pois assim que meu pai melhorou, o
senhor partiu, e pedi a Deus que não me deixasse morrer sem antes agradecer àquele
que fora o motivo de sua cura.
Agora
sei do seu segredo, e sei que irás partir, pois já ouço rumores que o senhor
mantêm-se muito jovem desde que chegou aqui.
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